Pular para o conteúdo principal

Encíclica "Fides et Ratio"


Oferecemos ao leitor um breve apanhado da Encíclica Fides et Ratio, de Sua Santidade o Papa João Paulo II. Trata-se de um dos documentos mais importantes de seu pontificado. 

Referência: João Paulo II. Encíclica Fides et Ratio (14-9-98)

A Encíclica divide-se em nove partes: a Introdução, sete capítulos e a conclusão.

Introdução. Entre o homem e os brutos há uma grande distinção, pois que ele - o homem -, à diferença dos brutos, é um buscador de si mesmo, da verdade sobre si mesmo e, por isso, da verdade enquanto tal. Conhece-te a ti mesmo! - eis a grande máxima. A filosofia tem um papel fundamental nesse campo: "A filosofia tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura por meio do apelo perene à busca da verdade". A Igreja, tendo a consciência de ser a depositária da revelação de Deus para a salvação do homem, não é alheia a essa busca.

A Revelação da Sabedoria de Deus. A fé cristã sustenta que Deus, soberanamente bom e misericordioso revelou o seu plano de Salvação por meio do Verbo feito carne, que veio a nós na força do Espírito, de modo que a "Revelação coloca dentro da história um ponto de referência de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério de sua existência" (n.14). Deus nos chama ao mergulho em sua própria vida. O homem é resposta pequena demais para o homem (contra o imanentismo e os diversos reducionismos).

Credo ut inttellegam (Creio para entender). A sabedoria de Deus é infinitamente grande. Ela manifesta-se pela revelação natural (ordem e maravilha das criaturas) e pela revelação especial na história (patriarcas, profetas e, sobretudo, Jesus). O homem está aberto à sabedoria, e a ela se chega não apenas pela observação atenta da natureza ou pela especulação científica e filosófica, mas também, e de modo mais sublime, pelo acolhimento na fé da Revelação de Deus na história, Ele que é a Sabedoria, anterior, superior e mais profunda do que a sabedoria meramente humana. Quem não reconhece que há um mistério que nos envolve engana-se a si mesmo. O homem é finito, e seu valor está em reconhecer o mistério que o envolve por todos os lados (aliás, pela simples razão natural, o homem pode reconhecer a existência de Deus, no qual reside toda a Sabedoria, que infinitamente ultrapassa o próprio homem.) Israel é exemplo: ao mesmo tempo que observava o mundo, a história e o próprio homem, soube abrir-se para a luz superior que lhe vinha de Deus. Na Nova Aliança, a Sabedoria de Deus manifesta-se, de modo singular, na Cruz de Cristo, o que pode parecer loucura para uma razão fechada em si mesma; no entanto, para a razão aberta à luz superior, a Cruz é a resposta mais adequada aos seus anseios mais profundos, anseios de amor autêntico: pelo mistério de Cristo crucificado, posso dizer: “o Amor me amou”.

Intellego ut credam (Entendo para crer). O homem é um buscador da verdade. Qual o sentido da vida? De onde vim? Para onde vou? Questões fundamentais! Há quatro níveis de verdade: a) da vida cotidiana; b) científica; c) filosófica; d) teológica. "O homem, por sua natureza, procura a verdade. Essa busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada uma das suas decisões. Mas a sua própria pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto" (n.33). Na busca do entendimento, o homem depara-se diante do mistério de Deus, que lhe propõe a fé. .

A relação entre fé e razão. A fé cristã, desde seus primórdios, encontrou-se com a filosofia e os filósofos. Do séc. II, com os apologistas, ao séc. XIII, com Santo Tomás, os pensadores alcançaram uma bela harmonia entre fé e razão. Em Santo Tomás essa harmonia atinge o seu auge e o seu máximo esplendor. Deus, sendo ao mesmo tempo o criador da razão humana e o autor da fé, é o garante da harmonia entre ambas. No entanto, já a partir da escolástica decadente, foi-se dando a dramática separação entre fé e razão. A filosofia moderna, por ser imanentista em sua base, afastou-se do auxílio de Deus. Hoje, até mesmo a filosofia se vê ameaçada. Fala-se do fim da filosofia. Com efeito, se não há um absoluto, em vão o homem procura afirmar-se.

Intervenções do Magistério em matéria filosófica. O Magistério, em virtude de seu ofício defender a verdade, sempre mostrou-se solícito pela filosofia, incentivando o cultivo de uma reflexão autêntica, reconhecedora da Transcendência e da dignidade do homem. A Igreja não poderá conformar-se com uma filosofia que negue a capacidade metafísica do homem, fechando-lhe as portas para o Transcendente. Por isso, cabe ao Magistério da Igreja, em sua diaconia da verdade, intervir quando as grandes verdades sobre Deus, o mundo e o homem forem postas em causa. O Magistério não quer regular a filosofia a partir de dentro, pois assim a destruiria, mas tem consciência de que não pode concordar com teses que neguem as grandes verdades, já conquistadas pelo labor de tantos pensadores, sobre Deus, o mundo e o homem, e que constituem a philosophia perennis, patrimônio intelectual da humanidade.

Interação da filosofia com a teologia. A filosofia pode e deve demonstrar os preambula fidei (a existência de Deus, o fato da Revelação, a imortalidade pessoal...), preparando, assim, o homem para acatar as verdades sobrenaturais (Trindade, encarnação do Verbo...). Há, para o pensador cristão, a necessidade de um conhecimento natural: o conhecimento das coisas criadas (naturais) pode contribuir enormemente para o conhecimento de Deus e para o diálogo entre fé e cultura. A teologia, por sua vez, contribui com a filosofia no sentido de purificá-la, pois a razão não está livre de equívocos, e de lhe abrir perspectivas inauditas, como o conceito de criação, que, embora sendo uma verdade filosófica e não somente teológica, a filosofia só a atingiu por influência da teologia.
.
Exigências e tarefas atuais. Que a filosofia volte a encontrar sua dimensão sapiencial (busca da sabedoria), vencendo doutrinas que lhe apequenam a visão e são inconciliáveis com a fé: imanentismo, relativismo, historicismo, positivismo, existencialismo ateu, pragmatismo... Passar dos fenômenos para o fundamento é a grande tarefa. A verdade existe objetivamente e pode ser buscada pelo homem, e ela não se restringe ao conhecimento empírico, próprio das ciências naturais.

Conclusão. Pensadores, filósofos e teólogos católicos devem ter a coragem de desenvolver e aprofundar as justas relações entre fé e razão, para mostrar ao mundo que uma não exclui a outra; ao contrário, ambas são como que asas de um pássaro que nos levam à contemplação da verdade, de Deus.
.

Comentários

  1. Caro Pe Elílio, a filosofia é a sua "cara". Esta encíclica demonstra o esforço do Papa João Paulo para defender o assunto. Porém a ultima frase que você escreveu, não poderia deixar de ser colocada (as duas asas)...Abraço e até...
    Jayme

    ResponderExcluir
  2. Caríssimo Pe Elílio, apesar de seu texto ser antigo, me ajudou muito no processo de compreensão desta encíclica do Papa. Obrigado. Que a paz de Cristo esteja com o senhor!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Combater o crime organizado

O combate ao crime organizado no Brasil é, ao mesmo tempo, complexo e simples. Complexo porque envolve múltiplas dimensões — políticas, econômicas, sociais, culturais — e simples porque exige o óbvio: inteligência, coordenação e vontade real de agir. Não há saída fácil, mas há caminhos claros. Um passo irrenunciável é o combate imediato, direto, às ações criminosas. É dever do Estado executar mandados de prisão, desmontar quadrilhas, apreender armas e drogas, e garantir que a lei se cumpra com firmeza e eficiência. Dentro da mesma linha de ação, criar leis mais rigorosas e eficazes, aumentar os presídios, fortalecer a polícia e punir os policiais que se deixam corromper. Mas isso, por si só, não basta. O crime organizado é um sistema, e todo sistema se sustenta por uma estrutura financeira. Desmontar o crime é também seguir o dinheiro: rastrear transações, investigar laranjas, identificar quem lucra com o crime. Certamente, há empresários e políticos que se beneficiam desse esquema, e ...

Convite ao eclesiocentrismo

O Cardeal Giacomo Biffi, arcebispo emérito de Bologna, faz um convite quase insuportável aos ouvidos que se consideram avançados e atualizados em matéria teológica: trata-se de um convite ao eclesiocentrismo. O quê? Isso mesmo. Um convite ao eclesiocentrismo. É o que podemos ler, estudar e meditar em seu livro sobre eclesiologia - La Sposa chiacchierata: invito all’ecclesiocentrismo -, que ganhou uma tradução portuguesa sob o título Para amar a Igreja . Belo Horizonte: Centro de Cultura e Formação Cristã da Arquidiocese de Belém do Pará / Editora O Lutador, 2009. . O motivo que leva o arcebispo e cardeal da Igreja Giacomo Biffi a fazer um convite assim tão «desatual» é o seu amor pela verdade revelada em Cristo. A teologia para Biffi não se deve ocupar com discursos divagantes sobre hipóteses humanas, não deve fazer o jogo do «politicamente correto», mas deve, isto sim, contemplar a « res », isto é, a realidade que corresponde ao desígnio do Pai, a sua verdade. E com relação à ver...

Memória de Santo Tomás de Aquino

. Homilia proferida por mim na festa de Santo Tomás de Aquino em Missa celebrada no Instituto Cultural Santo Tomás de Aquino, de Juiz de Fora, MG, do qual sou membro. Pe. Elílio de Faria Matos Júnior Prezados irmãos e irmãs na santa fé católica, Ao celebrarmos a memória de Santo Tomás de Aquino, patrono de nosso instituto, desejo reportar-me às palavras que o santo doutor, tomando-as emprestadas de Santo Hilário, escreveu logo no início de uma de suas mais importantes obras, a Summa contra gentes , e que bem representam a profunda espiritualidade do Aquinate e a vida mística que envolvia sua alma. Sim, Santo Tomás, além de filósofo e teólogo, homem das especulações profundas e áridas, era também um santo e um místico, homem da união com Deus. São estas as palavras: “Ego hoc vel praecipuum vitae meae officium debere me Deo conscius sum, ut eum omnis sermo meus et sensus loquatur” , isto é, “Estou consciente de que o principal ofício de minha vida está relacionado a Deus, a quem me ...