Pular para o conteúdo principal

Que civilização queremos?


Nossa civilização ocidental passa por uma crise cujos contornos atingem, de maneira inédita, seus próprios fundamentos. Ora, todos sabemos que as bases constitutivas de nossa cultura ocidental estão na Grécia antiga, de um lado, e no cristianismo, que se difundiu pelo antigo Império Romano no início de nossa era, de outro. O que hoje está em jogo é exatamente a concepção que essas bases de nossa civilização apresentam sobre quem é o homem.

Tanto a Grécia antiga, com a filosofia, quanto a fé cristã reconheceram o que se pode chamar de Transcendência. A Transcendência é uma Realidade que está acima do homem e do mundo, e é o fundamento de ambos. É o que podemos também chamar de divino ou de Deus. A Grécia antiga elevou-se até a Transcendência através do pensamento. Exercitando a razão em busca da verdade, principalmente em seus mais ilustres representantes – Sócrates, Platão e Aristóteles -, a filosofia grega deparou-se com o Princípio e Fundamento de tudo, que Platão celebrou como Sumo Bem ou Uno. Já o cristianismo, herdeiro da fé de Israel, recebeu como dom a plenitude da revelação divina em Jesus Cristo, que lhe apresentou o mistério transcendente do Deus Uno e Trino e o caminho da salvação eterna.

O que há em comum entre a filosofia grega e o cristianismo é que ambos afirmam que o mundo não se esgota no visível, pois que existe uma realidade metafísica que é a explicação última de todas as coisas. Assim, o homem, cujo fundamento lhe é transcendente, não é a medida de todas as coisas, mas é medido por uma realidade maior. Aliás, foi essa concordância fundamental entre filosofia grega e cristianismo que possibilitou, ao longo da história da Igreja, um diálogo frutuoso entre razão e fé, diálogo que encontrou em Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) o seu expoente paradigmático. Nesse mesmo sentido, Bento XVI, em sua famosa Aula Magna em Ratisbona em 2006, afirmou que as conquistas mais nobres da filosofia pertencem intrinsecamente à mensagem cristã, uma vez que o cristianismo é a religião, não só da fé, mas também da razão: Deus, que nos agracia com o dom da fé, é ele mesmo o criador da razão, e agir contra a razão é agir contra o próprio Deus!

A crise por que passa hoje nossa civilização consiste exatamente em rejeitar a Transcendência e colocar o homem como fundamento de todas as coisas. A razão humana, que deveria se abrir para sua fonte transcendente, fecha-se em si mesma e constrói a partir de sua própria finitude. Sem seu fundamento, isto é, sem Deus, a razão não pode ser ela mesma; torna-se uma sua caricatura. Trata-se de uma verdadeira crise, pois que implica uma mudança radical de orientação, uma nova concepção de homem, uma nova visão da vida. E é preocupante, dado que, se não há um fundamento maior que o homem, este pode arvorar-se em supremo árbitro e pretender impor a seus semelhantes ideologias que bem refletem a sua sede de poder ou a parcialidade de sua visão. Os totalitarismos do séc. XX, tanto de esquerda como de direita, são uma amostra do que é capaz o homem sem Deus.

Sem uma medida transcendente que as oriente, nossas sociedades ocidentais têm feito da moral uma questão de pura convenção, em que o certo e o errado são decididos pelo voto ou pelo apoio majoritário. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, favorável à manipulação de embriões humanos, é prova de que a violação da dignidade humana é legitimada pela vontade arbitrária. “Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”, já constatava Dostoievski em Irmãos Karamazov. Resta a pergunta decisiva e comprometedora: Que civilização queremos?




Padre Elílio de Faria Matos Júnior
Paróquia Bom Pastor
Professor de Filosofia no Seminário Arquidiocesano Santo Antônio
Arquidiocese de Juiz de Fora, MG

Comentários

  1. Prezado Padre,

    Se alguns ignoram o dado metafísico não seria devido ao fato de a "revelação" não ter chegado em suas vidas???

    Qual a proposta que faz para as decisões públicas no que tange ao certo e ao errado???

    Acha possível algumas pessoas mesmo crendo em alma mortal se guiarem porprincípios éticos sem o fundamento da religião???

    Um abraço.

    ResponderExcluir
  2. Prezado leitor,

    A Igreja sustenta que, mesmo sem a revelação, o homem tem a capacidade de atingir a Deus como fundamento do universo.

    As decisões públicas devem se pautar pela lei natural, que é a lei de Deus participada pela criatura racional. A lei natural, entre outras coisas, reconhece a inviolabilidade da vida humana inocente.

    O homem pode chegar a conhecer a lei natural mesmo sem a fé na revelação divina, mas, devido à corrupção do pecado original, só poderá cumpri-la com o auxílio da graça que vem de Cristo.

    A revelação divina é necessária ao homem porque Deus lhe destinou a um fim sobrenatural. Tal revelação não vem destruir a natureza humana, mas elevá-la ao fim proposto por Deus ao homem.

    Pe. Elílio

    ResponderExcluir
  3. Prezado Padre,

    "As decisões públicas devem se pautar pela lei natural, que é a lei de Deus participada pela criatura racional."

    Baseado na Lei natural, na cadeia alimentar denotativa e conotativa Hobbes descreve expressões célebres: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos.

    A lei natural é a do mais apto, a que lei natural se refere em: "A lei natural, entre outras coisas, reconhece a inviolabilidade da vida humana inocente." ???

    Será que Deus participou a lei natuiral a todos, ou só a lei da sobrevivência?

    Por que existe tanto mal??? Por que falta tanto bem???

    obs- "Mesmo sem a revelação, o homem tem a capacidade de atingir a Deus como fundamento do universo." - Deveras belo!!!

    Um abraço.

    ResponderExcluir
  4. Prezado leitor,

    A lei natural a que me refiro é a lei da natureza humana, isto é, a lei da razão natural, que ordena fazer o bem e evitar o mal. Ora, matar a vida inocente é um mal reconhecido pela reflexão racional.

    Tal lei natural é uma participação por parte da criatura racional na lei eterna, que se identifica com a disposição geral de Deus.

    Pe. Elílio

    ResponderExcluir
  5. Prezado Padre,

    Sugere alguma leitura que facilite o entendimento dos conceitos da lei natural???

    Favor indicar a bibliografia.

    Um abraço.

    ResponderExcluir
  6. Prezado leitor,

    Há muitas obras sobre a temática. Não obstante, sugiro-lhe uma, notável pela clareza:

    LEWIS, C. S. Mero cristianismo. São Paulo: Quadrante, 1997.

    Essa mesma obra foi publicada mais recentemente pela editora Martins Fontes:

    LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

    Lewis é um notável escritor inglês, que, de ateu que era, converteu-se ao cristianismo. O cientista norte-americano Francis Collis, diretor do Projeto Genoma, em seu livro "A linguagem de Deus. Um cientista apresenta evidências de que Ele existe", refere-se à leitura de "Mero cristianismo" como fator que o levou a questionar seu ateísmo.

    O livro indicado trata da questão da "lei natural" em sua primeira parte.

    ResponderExcluir
  7. Rita Thereza - ritathereza@hotmail.com19 de julho de 2009 às 21:24

    Enviado em 18/07/2009 às 19:19

    muito boa sua explicação; saudades de suas aulas;na época não entendia tanto quanto agora a o ler um texto belíssimo como este. Hoje encontro minha razão de viver em Deus e em sua transcendência.
    Tinha muitas tendências a ficar triste e isolada; hoje sinto-me mais tranquila e feliz , a presença do Espírito Santo em minha vida tem ajudado-me a ver a realidade através da razão e da fé; sentindo que se agimos contra nossa razão estamos fazendo este duelo com o Transcendente; e poderemos perde-lo por um tempo… E Êle nos quer de volta !
    Dê notícias suas e de Rosicler, uma simpatia..Irá mesmo para Roma?
    Na comunidade tudo corre bem, só não acertei com a s histórias ou fábulas que Padre João Francisco me pediu; mas enviei-a para uma amiga ela me ligou e perguntou Por que esta história para mim? Moral da história, contei sobre os projetos da Igreja e ela me mandou: quinhentos reais..
    Abraços para o senhor e seus entes queridos.]: sua irmã em Cristo: Rita THereza e família

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir