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De rationibus fidei (Santo Tomás de Aquino)

Apresentamos aos caros leitores uma tradução nossa, diretamente do latim, de um opúsculo escrito por Santo Tomás de Aquino, o maior teólogo do séc. XIII. O opúsculo intitula-se De rationibus fidei (Sobre as razões da fé), e presta-se ao esclarecimento sobre os fundamentos da nossa fé católica. A tradução será publicada em várias partes.

Pe. Elílio Júnior

DE RATIONIBUS FIDEI

Capítulo I

O plano do autor:

O bem-aventurado apóstolo Pedro recebeu do Senhor a promessa de que, sobre sua confissão, seria fundada a Igreja, contra a qual as portas do inferno não podem prevalecer. Para que a fé da Igreja a ele entregue permanecesse inviolada contra as portas do inferno, diz aos fiéis de Cristo: venerai o Senhor Jesus em vossos corações, isto é, pela firmeza da fé, por cujo fundamento, colocado no coração, poderemos permanecer seguros contra todas as impugnações ou irrisões dos infiéis. Donde também diz em seguida: estai sempre preparados a dar satisfação a todo aquele que vos pede a razão das coisas da vossa esperança e fé.

Ora, a fé cristã consiste principalmente na confissão da Santíssima Trindade, e especialmente em que se glorie da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois a sabedoria da cruz, como Paulo diz, embora seja estultícia para os que se perdem, para os que se salvam, isto é, para nós, é força de Deus.

Também a nossa esperança em duas coisas consiste: evidentemente naquilo que se espera depois da morte, e no auxílio de Deus, pelo qual somos ajudados nesta vida para alcançar, através das obras do livre arbítrio, a futura bem-aventurança prometida.

Estas, portanto, são as coisas, como afirmas, que são impugnadas e escarnecidas pelos infiéis. Zombam, pois, os sarracenos de que, como dizes, sustentamos que Cristo é Filho de Deus, sendo que Deus não tem esposa; e julgam-nos insanos porque confessamos haver três pessoas em Deus, estimando, por isso, que professamos três deuses. Zombam ainda por que dizemos que Cristo, Filho de Deus, foi crucificado pela salvação do gênero humano: porque se Deus é onipotente, teria podido salvar o gênero humano sem a paixão de seu Filho, teria podido também constituir de tal modo o homem que não pudesse pecar. Censuram também os cristãos porque cotidianamente manducam seu Deus e porque o Corpo de Cristo, mesmo se fosse tão grande como um monte, deveria já estar consumido. Em relação ao estado das almas depois da morte, afirmas que os gregos e os armênios erram, dizendo que as almas até o dia do juízo nem são punidas nem premiadas, mas estão como que em um depósito, porque nem pena nem prêmio devem ter sem o corpo. E, em conformidade com a afirmação de seu erro, alegam que o Senhor no Evangelho diz: Na casa de meu Pai há muitas moradas. Acerca do mérito que depende do livre-arbítrio, afirmas que tanto os sarracenos quanto outros povos atribuem necessidade aos atos humanos em virtude da presciência ou ordenação divina, dizendo que o homem não pode morrer nem pecar a não ser que Deus assim tenha ordenado a seu respeito, e que qualquer pessoa tem seu destino escrito na fronte.

Sobre isso, pedes razões morais ou filosóficas que os sarracenos aceitam. Em vão, pois, seria contrapor autoridades aos que não aceitam autoridades. Querendo satisfazer, então, a tua petição, que parece proceder de um pio desejo, e para que estejas, de acordo com a doutrina apostólica, preparado a dar satisfação a todo aquele que te pede razões, expor-te-ei algumas coisas fáceis, conforme a matéria exige, sobre premissas de que tratei mais amplamente alhures.


Capítulo II

Como se deve disputar com os infiéis:

Quero advertir-te primeiramente sobre isto: nas disputas sobre os artigos de fé contra os infiéis, não te deves esforçar para provar a fé por meio de razões necessárias. Isso derrogaria a sublimidade da fé, cuja verdade não só excede as mentes humanas como também as dos anjos; a verdade da fé é crida por nós como revelada por Deus. Ademais, uma vez que aquilo que procede da Suma Verdade não pode ser falso, a verdade da fé não pode ser impugnada por alguma razão necessária; assim como a nossa fé não pode ser provada por razões necessárias, já que excede a mente humana, de igual modo, por causa de sua verdade, não pode ser refutada por razão necessária. A isto, portanto, deve tender a intenção do disputador cristão: não prove ele a fé, mas a defenda; donde o bem-aventurado Pedro não diz: estai preparados para provar, mas para dar satisfação, de modo que se mostre racionalmente não ser falso o que a fé católica confessa.


Capítulo III

Como a geração em Deus deve ser entendida:

Primeiramente, deve-se considerar que o motivo por que zombam de nós, segundo o qual colocamos Cristo como Filho de Deus como se Deus tivesse esposa, é irrisório. Sendo, pois, carnais, não podem pensar senão nas coisas que são da carne e do sangue. Ora, qualquer sábio pode considerar que não há um só e mesmo modo de geração em todas as coisas, mas que em cada coisa encontra-se a geração segundo a propriedade de sua natureza. Em certos animais, por exemplo, através do acasalamento do macho e da fêmea; nas plantas, pelo crescimento ou germinação, e em outras coisas de outro modo.

Deus, porém, não é de natureza carnal para que exija uma fêmea com quem se unir para a geração da prole, mas é de natureza espiritual ou intelectual, natureza intelectual esta que está acima de todo intelecto.

Deve-se, portanto, entender a geração n’Ele segundo o que convém à natureza intelectual. E por mais que nosso intelecto seja inferior ao Intelecto divino, não podemos todavia falar de outro modo do Intelecto divino senão segundo a semelhança das coisas que encontramos em nosso intelecto. Nosso intelecto, na verdade, ora está em potência, ora em ato. Quando intelige em ato, forma determinado inteligível, que é como que a sua prole, donde é também denominado conceito (concebido - conceptus) da mente. E o conceito, na verdade, é aquilo que é significado pela voz exterior: donde, assim como a voz significante é dita verbo exterior, de igual modo o conceito interior da mente, significado pelo verbo exterior, é dito verbo do intelecto ou da mente. Este conceito de nossa mente, porém, não é a própria essência de nossa mente, mas é certo acidente dela, visto que o nosso inteligir não é o próprio ser de nosso intelecto; de outro modo, o nosso intelecto seria o que inteligisse em ato. O verbo de nosso intelecto, portanto, pode ser dito, segundo certa semelhança, ou conceito ou filho, principalmente quando nosso intelecto intelige a si mesmo, quando, evidentemente, o verbo é certa semelhança do intelecto, a qual procede de sua virtude intelectual, assim como o filho tem a semelhança do pai, procedendo de sua virtude generativa. Todavia, o verbo de nosso intelecto não pode ser dito propriamente filho ou prole, visto que não é da mesma natureza de nosso intelecto. Nem tudo que procede de algo, embora lhe seja semelhante, é dito filho; de outro modo, a imagem de si, que alguém pinta, seria propriamente dita filha. Mas, para que algo seja filho, requer-se que não somente tenha a semelhança daquele de que procede, mas também seja da mesma natureza dele. Visto que em Deus o inteligir não é outra coisa que o seu ser, consequentemente o Verbo que é concebido em seu Intelecto não é algum acidente ou um outro distinto de sua natureza; todavia, tem a relação de procedente de outro referente Àquele a partir de quem existe: isso se dá em nosso verbo.

Mas aquele Verbo divino, além de não ser algum acidente nem alguma parte de Deus, que é simples, nem um outro distinto da divina natureza, é subsistente completo na natureza divina, relacionando-se com outro como dele procedente. Sem isso, pois, o Verbo não pode ser entendido. O que procede assim, segundo o costume da linguagem humana, é denominado filho, porque, procedendo de outro, é-lhe semelhante, subsistindo na mesma natureza com ele. Na medida em que as coisas divinas podem ser denominadas com palavras humanas, denominamos Filho o Verbo do Intelecto divino; Deus, de quem é o Verbo, chamamos de Pai; e a processão do Verbo dizemos que é a geração do Filho imaterial, não carnal como os homens carnais supõem.

Há, porém, ainda outra coisa por que a predita geração do Filho de Deus ultrapassa toda geração humana, seja material, segundo a qual o homem nasce do homem, seja inteligível, segundo a qual um verbo é concebido na mente humana. Em ambos os casos, aquilo que procede por geração encontra-se depois no tempo daquele do qual procedeu. O pai, na verdade, não gera imediatamente desde o princípio de sua existência, mas é preciso que vá do estado imperfeito ao perfeito, no qual pode gerar. Nem, em segundo lugar, o ato de geração se dá de uma só vez; o filho nasce de tal modo que a geração carnal consiste em certa mutação e sucessão. Também, segundo o intelecto, o homem não está apto logo desde o princípio para formar os conceitos inteligíveis, vindo ao estado de perfeição posteriormente. Nem sempre intelige em ato, mas antes está somente em potência e só depois se faz inteligente em ato, e de quando em quando deixa de inteligir em ato, permanecendo o intelecto em potência ou em hábito apenas. Assim, o verbo do homem se encontra depois do homem no tempo e cessa de existir antes do homem. Mas isso é impossível convir a Deus, no qual nem imperfeição nem mutação alguma tem lugar, nem ainda qualquer passagem da potência ao ato, uma vez que Ele é o ato puro e primeiro. O Verbo de Deus é, portanto, coeterno ao próprio Deus.

Há ainda outra coisa pela qual nosso verbo difere do Verbo divino. O nosso intelecto não intelige todas as coisas simultaneamente nem em um único ato, mas por muitos, e por isso são muitos os verbos de nosso intelecto; Deus, porém, intelige todas as coisas simultaneamente e em um único ato, porque seu inteligir não pode ser senão um só, uma vez que é o seu ser: donde se segue que em Deus há somente um só Verbo.

Ademais, outras diferenças devem ser consideradas: o verbo de nosso intelecto não é proporcional à capacidade do intelecto, porque, quando concebemos algo na mente, muitas outras coisas ainda podemos conceber; segue-se que o verbo de nosso intelecto é também imperfeito, podendo nele haver composição, como quando de muitos verbos se faz um verbo mais perfeito, como no caso em que o intelecto concebe uma enunciação ou uma definição de alguma coisa. Mas o Verbo divino é proporcional à virtude de Deus, já que Deus, por sua essência, intelige-se a si mesmo e todas as outras coisas, donde seguir-se que o Verbo que concebe por sua essência, inteligindo a si mesmo e todas as coisas, seja tão imenso quanto a sua própria essência. É perfeito, simples e igual a Deus: tal Verbo denomina-se, pela sobredita razão, Filho de Deus, que confessamos ser da mesma natureza do Pai, coeterno a ele, unigênito e perfeito.

Comentários

  1. Está sendo muito bom ler estes textos excelentes de São Tomás. Que Deus abençoe este Padre que está fazendo esta obra tão benfazeja àqueles que procuram conhecer mais sobre os Mistérios de nossa santa Fé. Gostaria, apenas, de um esclarecimento da seguinta frase de São Tomás, no início do texto: "O bem-aventurado apóstolo Pedro recebeu do Senhor a promessa de que, sobre sua confissão, seria fundada a Igreja..".

    Minha dúvida é quanto a afirmação de que a Igreja fora edificada sobre a confissão de Pedro, e não sobre Pedro. Esta tese não é cara aos protestantes? A Igreja não foi edificada sobre Pedro? (Pedro/Pedra = Képhas)

    Fora isto, está excelente. Deus lhe pague!

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  2. Caríssimo Padre.
    Sua bênção.

    Num tempo em que a estultícia parece dominar, infelizmente, justamente no meio do clero, é um prazer e uma alegria ver tal trabalho de fôlego e erudição.

    Um abraço.

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  3. Prezado Carlos,

    A afiirmação de S. Tomás deve ser interpretada no sentido católico, segundo o qual a fé de Pedro (a fé do Papa) é inseparável da pessoa de Pedro (do Papa) enquanto doutor de todos os cristãos.

    Obrigado pelas palavras cheias de caridade para com meu trabalho!

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  4. Muito prezado Padre Elílio,

    Deus lhe pague a caridade em responder à minha dúvida. Conte com minhas orações.

    Viva o Papa!

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  5. Parabens, é sempre bom ter a graça do conhecimento com relação a igreja e pelo dia do padre atrazado.

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  6. Excelente este opúsculo de Santo Tomás de Aquino, por sinal um dos santos que mais gosto e adimiro. Não poderia ser diferente, já que ele é o Dr. Angélico. Aguardo com anseio a continuação deste trabalho.

    Lutemos para defender a verdade sempre Padre!

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  7. Rosiclair Alves de Castro Matos25 de março de 2010 às 13:35

    Parabéns Padre Elílio! Seus textos são claros, colocando em evidência o Catolicismo, a Fé e conhecimentos com muita propriedade.Continue escrevendo, usando o dom que Deus lhe deu!

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