É aqui que se encontra o coração da leitura que Maréchal faz de São Tomás: o intelecto humano é estruturalmente ordenado ao ser (ordo ad ens).
Vou detalhar em camadas:
1. Fundamento tomista
Para Santo Tomás, conhecer é receber a forma do objeto sem a matéria.
• A alma intelectiva é em potência para todas as formas inteligíveis.
• O intelecto agente abstrai a espécie inteligível da experiência sensível e a ilumina, tornando-a inteligível.
• O intelecto possível a recebe e, assim, apreende o objeto.
Logo, o intelecto não se fecha em si mesmo: sua potência está “vazia” (tabula rasa), aberta para ser preenchida pelas formas do real.
2. A noção de adaequatio rei et intellectus
• A verdade, para Tomás, é a adequação da inteligência ao ser (adaequatio intellectus et rei).
• Isso significa que o conhecimento não é mero estado subjetivo, mas sempre referência ao real.
• O intelecto é estruturado de tal maneira que só se atualiza quando se conforma a algo existente fora de si.
3. O ponto de Maréchal
Maréchal lê isso em chave crítica-transcendental:
• A abertura ao ser não é um “fato empírico”, mas uma condição de possibilidade do conhecer.
• Mesmo quando duvidamos ou negamos, já estamos em relação com o ser:
• Dizer “não existe verdade” implica afirmar ser verdadeiro que não há verdade. Tomás o percebe bem quando diz que a verdade em geral não pode ser negada sem contradição.
• Toda negação pressupõe o ser como horizonte.
• Assim, o intelecto humano é necessariamente “ordenado ao ser como ao seu objeto próprio” (a fórmula que Maréchal repete).
4. Implicações
• O ser não é um objeto entre outros, mas o horizonte universal de todo conhecimento.
• O intelecto é como um arco sempre tensionado em direção ao ser: não pode pensar sem já pressupô-lo.
• Essa estrutura é que permite deduzir a afirmação ontológica:
• Não porque se prove externamente, mas porque está implicada no próprio ato de conhecer.
5. Em linguagem mais simples
É como se a inteligência tivesse um “GPS interno” sempre apontado para o ser.
• Não podemos desligar esse GPS: mesmo que tentemos negar, já o estamos usando.
• Por isso, toda operação do intelecto confirma que estamos constitutivamente ordenados ao ser.
Em resumo:
O intelecto está ordenado ao ser porque só se atualiza na medida em que participa da inteligibilidade do ser. Ele é potência para o ser, e toda operação intelectual já pressupõe essa abertura. Para Maréchal, esse é o ponto que transforma o tomismo numa filosofia crítica: a relação ao ser é uma necessidade transcendental.
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