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S. Tomás contra o naturalismo e o materialismo

Santo Tomás tem um texto em De potentia, q. 3 a. 5 em que procura fazer ver que a matéria não pode ser o ser originário. Este só pode ser uno e único. Eis o texto:

“Deve-se dizer que os antigos progrediram na consideração da natureza das coisas de acordo com a ordem da cognição humana. Assim, como o conhecimento humano, começando pelos sentidos, chega ao intelecto, os primeiros filósofos ocuparam-se primeiramente com as coisas sensíveis e, a partir delas, aos poucos, alcançaram as inteligíveis.


E como as formas acidentais são sensíveis por si mesmas, enquanto as formas substanciais não o são, os primeiros filósofos afirmaram que todas as formas eram acidentes e que somente a matéria era substância. E, porque a substância é suficiente para ser a causa dos acidentes, que são causados pelos princípios da substância, segue-se que esses primeiros filósofos não postularam nenhuma outra causa além da matéria; ao contrário, afirmavam que tudo o que aparece nas coisas sensíveis provém dela. Por isso, foram levados a dizer que a matéria não tem causa e a negar totalmente a causa eficiente.


Os filósofos posteriores começaram a considerar de algum modo as formas substanciais, mas ainda não alcançaram o conhecimento dos universais; toda a sua atenção permaneceu voltada para as formas particulares. 


Por essa razão, alguns deles postularam certas causas eficientes, mas não causas que conferissem o ser universalmente às coisas; apenas causas que transformavam a matéria para assumir esta ou aquela forma. Assim, falavam do intelecto, da amizade e da luta, cujas ações consistiriam em separar e unir. Dessa forma, segundo esses filósofos, nem todos os entes procediam de uma causa eficiente, pois a matéria era considerada como algo pré-existente à ação da causa agente.


Por fim, filósofos mais tardios, como Platão, Aristóteles e seus seguidores, chegaram à consideração do próprio ser universal. Por isso, apenas eles afirmaram a existência de uma causa universal das coisas, da qual tudo o mais provém. Isso é afirmado também por Santo Agostinho. E essa posição é aceita pela fé católica.


Tal afirmação pode ser demonstrada de três maneiras:


1. Primeira razão: Se algo é encontrado de forma comum em muitas coisas, então deve ser causado por uma única causa. Isso porque não pode ser que esse atributo comum pertença a cada coisa por si mesma, uma vez que cada uma se distingue das outras pelo que ela é. E como diferentes causas produzem efeitos diferentes, e o ser é algo comum a todas as coisas (as quais, por sua própria essência, são distintas entre si), segue-se necessariamente que o ser não pertence a elas por si mesmas, mas lhes é atribuído por uma única causa. Essa parece ser a razão de Platão, que sustentou que, antes de toda multiplicidade, deveria haver uma unidade — não apenas no domínio dos números, mas também na natureza das coisas.


2. Segunda razão: Quando algo é encontrado em diversas coisas de maneira desigual, deve ter sua origem naquele em que se encontra de modo perfeito. Isso porque as realidades que se dizem em termos de “mais” e “menos” são assim por estarem mais ou menos próximas de algo único. Se cada uma delas possuísse essa qualidade por si mesma, não haveria razão para que se encontrasse mais perfeita em uma do que em outra. Assim, vemos que o fogo, que é o extremo do calor, é o princípio do calor em todas as coisas quentes. Ora, deve-se admitir a existência de um ente que é o ser mais perfeito e verdadeiro. Isso se prova pelo fato de que há um ser absolutamente imóvel e perfeitíssimo, como demonstrado pelos filósofos. Portanto, todos os demais entes, menos perfeitos, recebem o ser desse ente. E essa é a prova de Aristóteles.


3. Terceira razão: Aquilo que existe por outro deve ser reduzido, como a uma causa, àquilo que existe por si mesmo. Assim, se houvesse um calor que existisse por si mesmo, ele seria a causa de todos os seres que possuem calor por participação. Ora, deve-se admitir a existência de um ente que é o próprio ser por essência. Isso se prova pelo fato de que deve haver um primeiro ser que seja ato puro, sem composição alguma. Logo, tudo o que não é seu próprio ser, mas tem o ser por participação, deve proceder desse único ente. Essa é a razão apresentada por Avicena.


Dessa forma, tanto pela razão quanto pela fé se sustenta que todas as coisas foram criadas por Deus.”


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