Pular para o conteúdo principal

O homem e a religião


Se não encontramos em nós mesmos as condições de possibilidade de receber uma luz de ordem metafísica; mais: se não reconhecemos em nós uma abertura dinâmica, um movimento para uma luz que em si mesma ultrapassa todas as exigências e expectativas puramente humano-mundanas; ou seja, se não reconhecermos que estamos já, de alguma maneira, para além do mundano e do meramente humano, todo o discurso da religião, com suas narrativas e dogmas, de modo especial nestes tempos de grandes mudanças, soará como obsoleto. Ou então estará simplesmente entregue ao sentimentalismo que não convence os espíritos mais exigentes ou ao fanatismo ou ao fundamentalismo que o desfiguram. 

A revelação cristã não é simplesmente um pacote que cai abruptamente do céu sem nenhuma relação com o que o homem é em sua constituição íntima. Embora o conteúdo ou a finalidade da revelação ultrapasse toda medida humana, pois, em última análise, o seu objeto é a transformação em Deus, é graça pura, ela não encontra na constituição humana um terreno indiferente ou neutro. Ao contrário, o homem está aberto — ativa e dinamicamente aberto — a uma palavra ou a uma luz transcendente. Ele anseia por isso sem saber dar-lhe nome e conteúdo precisos. 

Em seu ser humano, o homem já vive, de alguma maneira, para além do humano-mundano. É tomando consciência disso que o homem atual — esclarecido, informado das grandes conquistas dos saberes acumulados, conhecedor do fim das sociedades sacrais e habitante do clima desenhado pela ciência e pela técnica, também muitas vezes desiludido pela ondas de niilismo e irracionalismo — poderá ver que o que diz a religião em essência não perdeu a atualidade; antes, é de uma atualidade impressionante, só que de uma outra ordem, não daquela simplesmente pragmática.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Infalibilidade e indefectibilidade da Igreja

Infalibilidade e indefectibilidade: distinção, exemplos e formas de exercício A doutrina católica distingue entre a indefectibilidade e a infalibilidade da Igreja. Pela indefectibilidade, a Igreja recebeu de Cristo a promessa de que não pode trair a fé. Trata-se de um carisma de fidelidade que assegura que, apesar dos pecados de seus membros e das limitações históricas de suas expressões, a Igreja não falhará no essencial da transmissão do Evangelho. Já a infalibilidade é a forma especial e qualificada desse dom: em certas condições, a Igreja pode definir de maneira irreformável uma doutrina de fé ou de moral, seja por um ato solene, seja pelo testemunho constante do Magistério Ordinário Universal. Na indefectibilidade, encontramos exemplos de como a Igreja, ao longo da história, protegeu o núcleo da fé mesmo quando utilizou formulações que, mais tarde, se tornaram ultrapassadas. Assim aconteceu, por exemplo, com algumas condenações medievais de teses filosóficas ligadas ao aristotelis...

Metafísica essencial

Cornelio Fabro foi quem realçou a centralidade do ser como ato intensivo na metafísica de S. Tomás  Metafísica essencial:  1. Ipsum Esse É a perfeição máxima formal e real. Ato puro. Intensidade máxima. É participável pelas criaturas através de essências limitadas e da doação de ser como ato a tais essências.  • O ipsum Esse subsistens é a plenitude formal e atual do ser. Não é apenas a perfeição máxima “formal” no sentido lógico, mas o ato mesmo da atualidade infinita.  • Fabro enfatiza que o Esse divino é incomunicável em si mesmo (ninguém nem nada pode possuir ou receber a infinitude divina), mas é participável secundum quid , na medida em que Deus doa o ser finito às essências criadas.  • Aqui está a raiz da analogia entis : há continuidade (participação) e descontinuidade (infinitude divina versus finitude criada). ⸻ 2. Essência ( esse ut participabile ) É o ser enquanto participável, receptivo, em potência. Em si não é atual, mas uma capacidade de atuali...

A morte de Jesus. Visão de Raymond Brown

  A visão de Raymond E. Brown sobre a morte de Jesus é uma das mais respeitadas no campo da exegese católica contemporânea. Brown foi um dos maiores especialistas em literatura joanina e autor da monumental obra The Death of the Messiah (1994, 2 vols.), que analisa de maneira técnico-teológica os relatos da Paixão nos quatro evangelhos. Seu trabalho é uma síntese rigorosa de crítica histórica, análise literária e teologia bíblica, sustentada por fidelidade à fé católica e abertura ao método científico. Abaixo, apresento um resumo estruturado da sua interpretação da morte de Jesus: ⸻ 1. A morte de Jesus como fato histórico e evento teológico Para Brown, a morte de Jesus deve ser compreendida em duplo registro:  • Histórico: Jesus foi condenado e crucificado por decisão de Pôncio Pilatos, sob a acusação de reivindicar uma realeza messiânica que ameaçava a ordem romana.  • Teológico: desde o início, os evangelistas narram a Paixão à luz da fé pascal, como o momento culminant...