Pular para o conteúdo principal

A descoberta do ser

Segundo Santo Tomás, os filósofos, passo a passo, foram-se aproximando da verdade. 

Os primeiros (pré-socráticos) estavam tão ligados ao sensível que pensavam existir apenas coisas materiais. Postulavam um ou mais substratos (água, ar, terra, fogo...) eternos e indestrutíveis. O devir era visto como mudança acidental de uma mesma substância material originária. 

Depois, vieram os filósofos que entenderam que a forma é ente, e é mais ente do que a matéria. A matéria passou a ser vista como potência, e o devir foi explicado como a passagem da potência para o ato, este último dado pela forma. Nesse sentido, o devir não foi visto necessariamente como simples acidente, mas sobretudo como mudança substancial, perda ou recebimento de uma forma. Esse estágio representa a vitória do inteligível sobre o simples sensível. A filosofia elevou-se da matéria à forma ou à substância (dada pela forma). 

Em ambos esses estágios, o devir ocupa a ribalta, na medida em que sempre se pressupunha um nível de ser que muda, o qual seria ou o ser primordial que sofre mudanças acidentais (pré-socráticos) ou o substrato eterno que seria reduzido a ente através das formas (Platão e Aristóteles). 

Por fim, vieram outros filósofos que se elevaram à consideração do ente enquanto ente. A partir da noção de criação que receberam da mensagem bíblica, atinaram para a raiz de todo o conjunto de entes, que é o ser em ato deles. Em Aristóteles o ente enquanto ente era tão somente o ente enquanto se funda na substância, já que o ser por antonomásia visto pelo Estagirita era a substância. Já entre os filósofos deste terceiro estágio, “ente enquanto ente” refere-se ao ente enquanto tem ser. Santo Tomás fez ver que o ser é aquilo pelo qual toda forma ou substância exerce seu ato de ser; o ser é a raiz de tudo o que é, tanto da matéria quanto da forma ou da substância. Essa é a consideração mais profunda do ente. 

Esses filósofos ultrapassaram a consideração sensível e a própria consideração formal ou substancial, pois que não se detiveram na consideração dos entes enquanto são estes entes (aspecto material) ou enquanto são tais entes (aspecto formal). Procuraram considerar os entes enquanto têm ser, e reconheceram que o ser comum dos entes depende de uma causa. E assim chegaram a Deus como Ser subsistente, que cria o universo de entes ex nihilo sui et subjecti

A criação não é propriamente um devir, já que não pressupõe nenhum substrato, mas é o começo absoluto do ente que devém. O devir, neste terceiro estágio, não é primário; deixa a ribalta e ocupa lugar de menos destaque. O Ser criador é imóvel, e o ato da criação não é um movimento. O devir só acontece a partir do ente finito criado: supõe sempre o ato da criação. A criação, por sua vez, supõe apenas o poder infinito do Ser subsistente, que é capaz de colocar na existência entes que participem de sua plenitude.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir