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Três papas diversos, uma só fé

Elílio de Faria Matos Júnior

Fui criado sob o pontificado de S. João Paulo II. Vejo hoje que fui muito influenciado por ele, conservador “ad intra” e progressista “ad extra”. Sua preocupação maior era salvaguardar a tradição moral - sexual e bioética - da Igreja diante de um mundo que se sentia atraído por novas liberdades. Lutou também contra tendências que considerava destrutivas na Igreja, como uma certa interpretação do Vaticano II e uma certa reinterpretação da fé por novas teologias. Publicou o que se pode chamar de “Magna Charta” sobre o amor que a Igreja nutre pela razão como colaboradora da fé - a encíclica “Fides et Ratio”. A “teologia do corpo” foi cultivada e incentivada por ele. No seu último livro de memórias, ele que vivera o horror do Nazismo e do Comunismo, chamou a atenção para a filosofia de S. Tomás como aquela que nos dá a luz para saber distinguir o bem do mal. No campo social, João Paulo II não deixou de conclamar os governos à justiça, pois a paz depende dela. Visitou Cuba e desejou-lhe a paz. Criticou o sistema financeiro e cobrou do Brasil a reforma agrária.

O seu sucessor, Bento XVI, de pronunciado perfil intelectual, não cessou de denunciar a filosofia relativista que estava dominando a sua amada Europa, e, por extensão, o mundo. Ele procurou sobretudo apresentar ou reapresentar o depósito da fé diante de uma Igreja que considerava vacilante e de um mundo pós-cristão. Por isso, não economizou palavras de crítica à modernidade e pós-modernidade, e veio a intensificar a necessidade de uma justa hermenêutica do Concílio Vaticano II. Como quer que seja, o seu pensamento é sempre muito refinado, e não se pode enquadrá-lo em esquemas fáceis. O seu belo estilo literário eternizou-se em textos como o da encíclica “Deus caritas est”. Elegeu a liturgia papal e o cuidado com a sua estética como meio de fazer brilhar a luz do sagrado num mundo pós-sacral. A Igreja, nisso, em grande parte não o acompanhou.

O que se dá é que, desde o Vaticano II, a Igreja colocou oficialmente a questão da distinção e relação entre a essência da fé e a sua expressão histórica. Muitos teólogos e pastores já a levantavam antes do Concílio, mas este a colocou de maneira oficial. Desde Trento, a Igreja vivera tempos, durados quatro séculos, de uma uniformidade mais ou menos pacífica, mas algo enrijecida. É compreensível que hoje ela discuta sobre a essência que deve permanecer e sobre a legitimidade das expressões históricas; sobre em que se pode avançar e sobre o que é definitivo. Penso que será um debate ainda longo.

O Papa Francisco, que não tem as mesmas preocupações de João Paulo II e Bento XVI, tem insistido mais na cultura do encontro e do serviço que a Igreja deve prestar a um mundo cheio de dramas sociais e existenciais. A sua postura é menos de preocupação com a preservação da instituição do que com o serviço concreto que ela pode mostrar às pessoas. É assim que ele crê poder salvar a Igreja de certas mazelas que vivem em seu interior. “Prefiro uma Igreja machucada pelas estradas a uma Igreja doente, fechada na sacristia”.

Perspectivas diversas. A mesma fé em Cristo. Pluralidade que enriquece a unidade.

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