Pular para o conteúdo principal

De re biblica


Elílio de Faria Matos Júnior

Uma das mudanças mais impactantes que o cristianismo católico sofreu no século XX esteve relacionada à aceitação de uma nova maneira de ler e interpretar a Bíblia. Essa mudança do não foi mais evidente porque não chegou ao povo em geral, restringindo-se a especialistas e a quem se tem mostrado mais curioso ou investigativo. O documento que assinala a novidade é a encíclica de Pio XII — Divino Afflante Spiritu, de 1943.

Os protestantes liberais, desde o século XVIII, já haviam tomado a Bíblia como um texto antigo aplicando-lhe o instrumental “profano” de análise que era usado para textos antigos similares. Aliás, já Espinosa, no século XVII, voltara sua atenção para o que poderíamos chamar de “aspecto humano” da Bíblia.

A Igreja católica, por causa da veneranda doutrina da inspiração e infalibilidade da Bíblia, mostrou-se receosa em relação aos novos modos de abordagem dos textos sagrados. A Bíblia não é Palavra de Deus? Como então aplicar à Palavra de Deus um instrumental de análise que tem a pretensão de fazer ver como o texto nasceu e se constituiu — tudo num ambiente fundamentalmente humano?

O Papa Pio XII, com a referida encíclica, deu liberdade aos católicos para valer-se do instrumental profano — arqueologia, paleontologia, história comparada das religiões, linguística... — no estudo dos textos sacros. O que mudou?

Para a Igreja católica, a Bíblia continuou sendo a Palavra de Deus inspirada e sem erro, pois que ensina a verdade salvífica ou a verdade religiosa. No entanto, desfez-se a impressão que muitos carregavam consigo de que essa Palavra tivesse como que caído pronta do céu, ou mesmo tivesse sido ditada diretamente por Deus. O elemento humano da Palavra foi evidenciado. A Bíblia não caiu do céu, mas foi sendo constituída por diversos autores e com diversos estilos de linguagem.

Deus fala pela Bíblia? Fala. Mas não fala como alguém que dita um texto. Compreendeu-se, na verdade, que o texto nasce do chão da vida do Povo de Deus. Aliás, devemos falar de textos, no plural, já que a Bíblia é uma coleção de textos de diversas épocas, de diversos gêneros literários e com diversas finalidades.

O que garante a ligação da Bíblia com Deus a ponto de poder ser chamada Palavra de Deus é a ligação de um povo, do qual e para o qual a Bíblia foi gestada, com o próprio Deus. O povo “concebeu” a Bíblia na relação histórica — de alegria e tristeza, vitórias e derrotas, lutas e esperanças — com o seu Deus. A ação de Deus na vida do seu povo — do Antigo e do Novo Testamento — foi o princípio ativo que “gerou” a Bíblia. Eventos como a libertação da escravidão do Egito (Antigo Testamento) e a ressurreição de Jesus (Novo Testamento) marcaram a consciência do Povo de Deus, que neles viram a ação salvadora de Deus.

A Bíblia, assim, é testemunho de uma Aliança com Deus e, ao mesmo tempo, o fundamento da perpetuação dessa Aliança — o fundamento de um culto, de uma doutrina e de uma esperança. A Bíblia não é a primeira causa da fé do povo, mas é o grande fruto dessa fé que reconhece a ação de Deus. Outrossim, é o fundamento da fé de gerações que haveriam de vir e como que herdar a experiência dos primeiros.

Hoje a Igreja lê a Bíblia com olhos renovados, mas não com outros olhos. Os olhos são os mesmos — os da fé. Mas a Igreja sabe que a Bíblia traz uma linguagem própria cujo sentido deve ser captado a partir do sentido da história da salvação. Bíblia e história se confundem. Daí a importância de ler o texto no seu contexto histórico de origem. Eu não tomo um texto bíblico e o interpreto ao pé da letra, sem relação com a história que o gerou; história de aliança entre Deus e seu povo; história que continua na Igreja.

Pela relação com a história da salvação e com os ensinamentos oficiais da Igreja, temos os grandes pontos referenciais de como entender os textos bíblicos. Mas, dentro destes grandes marcos, eu posso dar a minha tonalidade particular à interpretação da Bíblia. Assim, por exemplo, todas as vezes que leio sobre o evento de libertação do povo hebreu, eu posso ver aí a minha libertação pessoal ou a de minha comunidade. O texto adquire assim seu sentido e seu sabor a partir das atitudes e sentimentos que provoca no leitor.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Do mundo do devir ao Ser absolutamente absoluto: um itinerário do pensamento

A filosofia ocidental nasce da exigência de compreender o ser. Platão, diante do mundo sensível, marcado pelo devir, pela transformação incessante e pela imperfeição, percebeu os limites da realidade material. Para ele, o mundo visível não pode explicar-se por si mesmo: sua contingência só se torna inteligível à luz de um mundo superior, estável e perfeito — o mundo das Ideias. Assim, o imperfeito remete necessariamente ao perfeito. Aristóteles, discípulo de Platão, volta-se de modo mais atencioso para o mundo sensível. Não nega sua inteligibilidade, mas a fundamenta em princípios racionais: a substância, a forma, a matéria, as causas. O cosmos é compreensível porque é ordenado. Contudo, esse movimento ordenado exige um fundamento último que não se move: o motor imóvel. Aristóteles não o descreve como criador, mas como ato puro, causa final de toda realidade em movimento. Com o cristianismo, a intuição filosófica do Princípio se eleva a um plano novo. Antes de tudo, o cristianismo não ...

A parábola do pobre Lázaro e do rico epulão: um chamado à mudança de vida

O Evangelho deste domingo nos apresenta uma cena dramática e profundamente atual: à porta de um homem rico, que todos os dias se vestia de púrpura e linho e banqueteava esplendidamente, jazia um pobre chamado Lázaro, coberto de feridas, que desejava apenas as migalhas que caíam da mesa. Quando a morte chega para ambos, os papéis se invertem: o pobre é consolado no seio de Abraão, enquanto o rico se vê em tormento. Esta parábola pode ser contemplada a partir de dois pontos fundamentais para nossa vida cristã e comunitária. ⸻ 1. Relativizar sucessos e insucessos deste mundo A primeira lição do Evangelho é clara: nada neste mundo é definitivo. Os sucessos humanos — saúde, riqueza, fama, reconhecimento — são passageiros. Da mesma forma, os insucessos — pobreza, doença, sofrimento, abandono — não têm a última palavra. O rico epulão parecia vitorioso: rodeado de bens, de abundância e conforto. O pobre Lázaro, por sua vez, parecia derrotado: relegado à miséria, sem consolo humano. Mas a morte...

Teologia da libertação como parte, não como o todo da teologia

A teologia da libertação, surgida em solo latino-americano e desenvolvida em diálogo com a realidade concreta de nossos povos, apresenta diferentes correntes e matizes. Não se trata de um bloco único, mas de uma pluralidade de vozes que buscam responder à mesma interrogação: como anunciar o Evangelho em contextos marcados por graves injustiças sociais? Em linha de princípio, uma reflexão teológica voltada para a libertação é não apenas legítima, mas necessária e oportuna. Em países como os da América Latina, onde a desigualdade social é gritante, a fé cristã não pode se manter indiferente diante do sofrimento dos pobres e da exclusão das maiorias. A teologia da libertação, nesse sentido, cumpre uma função crítica: questiona as causas estruturais da injustiça, examina os mecanismos de opressão, avalia os meios adequados para a superação dessas situações e defende o direito dos povos a uma libertação não apenas espiritual, mas também econômica, social e política. Nessa linha, o Papa S. J...