Pular para o conteúdo principal

Contradição no sistema kantiano

Pe. Elílio de Faria Matos Júnior

Como se sabe, o filósofo Immanuel Kant (séc. XVIII) empreendeu um enorme obra de crítica do conhecimento consignada na sua famosa Crítica da Razão Pura. Ele aí defendeu que somos aptos para conhecer cientificamente somente o que cai sob os nossos sentidos, ao qual de imediato a estrutura do eu penso aplica as suas formas a priori: espaço, tempo e categorias do entendimento, entre as quais a categoria de causalidade. Isso quer dizer que, para Kant, a causalidade (juntamente com as outras formas a priori) não existe fora da mente ou nas coisas, mas é somente uma forma da mente, que aplico ao que me vem pelos sentidos. Assim, o que conhecemos não é simplesmente o que estava lá fora como já dado, já pronto. O dado puro não existe pra Kant. Nossa estrutura de conhecimento sempre filtra o que cai sob os sentidos através de suas formas a priori. O conhecimento, assim, para Kant, é fruto da nossa ação, isto é, da ação espontânea do nosso aparato cognoscitivo (que existe já antes de toda experiência sensível). 

Para além da experiência sensível, existem as grandes ideias que podemos pensar (a ideia de "eu", de "mundo" e de "Deus"), mas não conhecer. O que podemos pensar, mas não é passível de uma experiência sensível (como as ideias de "eu", "mundo" e "Deus"), não pode ser objeto de ciência, isto é, não pode ser conhecido. Assim, Kant proclamava o fim da metafísica como ciência do meta-sensível. O fim da possibilidade de conhecer pela razão, entre outras coisas, Deus e a alma, que nos seus Solilóquios, eram as duas únicas coisas que Santo Agostinho dizia que vale a pena conhecer e pelo qual ele empregou todo seu esforço. 

Acontece, porém, que, para não cair num idealismo extremo, Kant sempre admitiu e existência extra-mental de uma realidade que jamais saberemos o que é e que pode ser apenas pensada (noumenon). Se Kant não admitisse tal realidade fora da nossa mente, ele teria de admitir que todo o nosso conhecimento derivasse da estrutura a priori do eu penso. O conhecimento seria então totalmente fruto do eu penso. A única realidade seria o eu penso. Idealismo puro. Para não chegar a tanto, a realidade extra-mental sempre admitida por ele (conhecida também como coisa em si) exercia o papel de fundamento e causa do dado sensível que informa as nossas estruturas cognoscitivas. O conhecimento, então, não é pura obra do eu penso, muito embora o eu penso aja, como já se disse. O conhecimento depende do dado sensível e este depende da coisa em si, seu fundamento e causa, que, porém, nunca saberemos o que seja. 

Notamos, porém, no sistema de Kant, uma grande e fundamental contradição. Como a coisa em si, que está fora da mente e que é necessária no sistema kantiano para não se cair no idealismo mais extremado, pode realmente causar o conhecimento (ela é o fundamento ou a causa do dado sensível que nos atinge) se a causalidade, segundo o próprio sistema de Kant, é somente uma forma a priori do conhecimento e não pertence ao que está fora da mente?

Resta dizer: sem a coisa em si, o sistema de Kant não funciona bem, vira idealismo puro e simples. Com a coisa em si, o sistema é implodido a partir de seus próprios fundamentos. 

Comentários

  1. Se segundo Kant não podemos conhecer nada que não seja sensível, portanto Deus e até a nossa própria alma, como Kant explica o nosso "eu" ( o conhecimento de nós mesmos) ? Obrigado.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A totalidade do Ser e o acesso filosófico a Deus em Lorenz B. Puntel

1. Introdução: a retomada da metafísica Lorenz B. Puntel insere-se no esforço contemporâneo de reabilitar a metafísica, mas de forma criativa, com um projeto que ele denomina de “nova metafísica”. Em vez de simplesmente repetir modelos do passado ou rejeitar a metafísica sob influência kantiana, positivista ou heideggeriana, Puntel busca um ponto de partida radical: a capacidade estrutural da mente de apreender a totalidade do ser. Esse deslocamento inicial é decisivo. A filosofia moderna muitas vezes concentrou-se na relação sujeito/objeto, nas condições da experiência ou nas linguagens que estruturam o pensamento. Puntel recorda que tudo isso já pressupõe algo mais originário: que sempre nos movemos no horizonte do ser como um todo. É essa totalidade que se torna o objeto próprio da nova metafísica. ⸻ 2. A dimensão epistemológica: o dado originário da razão A primeira tese é epistemológica: a apreensão da totalidade do ser é um fato originário da razão. Quando pensamos, não pensamos ...

Marín-Sola e o desenvolvimento da teologia da graça

  Francisco Marín-Sola, um teólogo dominicano do século XX, foi um dos principais responsáveis pela reformulação da tradição bañeziana dentro do tomismo. Ele buscou suavizar alguns aspectos da doutrina da graça e predestinação, especialmente no que diz respeito à relação entre a liberdade humana e a causalidade divina. Sua obra tentou conciliar a soberania absoluta de Deus com uma maior ênfase na cooperação humana, evitando o determinismo implícito no modelo de Bañez e Garrigou-Lagrange. ⸻ 1. Contexto da Reformulação de Marín-Sola • A escola tomista tradicional, especialmente na versão de Domingo Bañez e Reginald Garrigou-Lagrange, defendia a moción física previa, segundo a qual Deus pre-move infalivelmente a vontade humana para o bem ou permite o pecado através de um decreto permissivo infalível. • Essa visão levantava críticas, pois parecia tornar Deus indiretamente responsável pelo pecado, já que Ele escolhia não conceder graça eficaz a alguns. • Francisco Marín-Sola...

A morte de Jesus. Visão de Raymond Brown

  A visão de Raymond E. Brown sobre a morte de Jesus é uma das mais respeitadas no campo da exegese católica contemporânea. Brown foi um dos maiores especialistas em literatura joanina e autor da monumental obra The Death of the Messiah (1994, 2 vols.), que analisa de maneira técnico-teológica os relatos da Paixão nos quatro evangelhos. Seu trabalho é uma síntese rigorosa de crítica histórica, análise literária e teologia bíblica, sustentada por fidelidade à fé católica e abertura ao método científico. Abaixo, apresento um resumo estruturado da sua interpretação da morte de Jesus: ⸻ 1. A morte de Jesus como fato histórico e evento teológico Para Brown, a morte de Jesus deve ser compreendida em duplo registro:  • Histórico: Jesus foi condenado e crucificado por decisão de Pôncio Pilatos, sob a acusação de reivindicar uma realeza messiânica que ameaçava a ordem romana.  • Teológico: desde o início, os evangelistas narram a Paixão à luz da fé pascal, como o momento culminant...