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Fenômeno, númeno e a assimptoticidade do sentido: uma leitura crítica de Kant

A distinção entre fenômeno e númeno é um dos eixos centrais da filosofia crítica de Immanuel Kant. Em sua formulação original, ela tem um propósito delimitador: mostrar que a razão humana só conhece aquilo que aparece segundo as condições da sensibilidade e as categorias do entendimento. Fenômeno é, assim, o objeto tal como é dado nas condições do nosso aparato cognitivo; númeno, o objeto considerado em si mesmo, independentemente dessas condições.

A tese kantiana parece, à primeira vista, conduzir a um agnosticismo radical: se só conhecemos fenômenos, então nada sabemos — absolutamente nada — da realidade tal como ela é. Contudo, essa interpretação maximamente cética não é necessária, e, filosoficamente, tampouco sustentável. E aqui começa a possibilidade de uma leitura mais elevada.


1. Porque o agnosticismo radical não se sustenta

Mesmo Kant, ao afirmar a existência problemática do “númeno” como “coisa em si”, admite que há algo que se encontra na base da experiência. A própria ideia de limitação — “o conhecimento humano é limitado ao fenômeno” — só é inteligível porque há algo que limita, algo para além do conhecimento empírico.

Se existe o númeno, então já não se pode falar em um desconhecimento absoluto do ser. Não conhecemos o objeto em sua positividade plena, mas conhecemos que ele é, e conhecemos que ele fundamenta o domínio dos fenômenos. Isso já implica um tipo de contato intelectual, ainda que negativo ou indireto, com o real em si.

Dizer, portanto, que nada sabemos do ser em si é contradizer o próprio gesto crítico que reconhece sua existência. O agnosticismo radical se desfaz pela simples constatação de que a noção de númeno não é igual à noção de nada. O “não conhecer” kantiano significa não possuir uma intuição intelectual criadora, não significa ausência total de relação cognoscitiva.


2. Cada coisa tem sentido no todo

Se abandonarmos o agnosticismo extremo e entendermos a distinção kantiana de modo mais metafísico, podemos formular uma tese mais fecunda: cada ente possui um sentido próprio, mas esse sentido só é inteligível em referência ao sentido total do conjunto do real.

A significação plena de cada coisa não está isolada nela mesma; ela é um nó, um ponto, uma participação no tecido da totalidade. O sentido das partes é sempre derivado do sentido do todo. E o sentido do todo não é algo que o intelecto humano, como natureza criada, possa esgotar: ele só é plenamente visto por um Intelecto criador.

Nesse quadro, não se trata de negar Kant, mas de reinterpretá-lo:

o fenômeno é a maneira como a verdade se doa a um intelecto condicionado;

o númeno é a plenitude da inteligibilidade da coisa, tal como vista por um intelecto que não depende da sensibilidade nem das categorias: um Intelecto divino.

A distinção permanece válida, mas deixa de implicar ceticismo; ela passa a expressar a diferença entre o olhar criado e o olhar criador.


3. O conhecimento humano como aproximação assimptótica

Se o intelecto humano não é criador, mas criado, o nosso acesso à inteligibilidade última das coisas não é total, mas assintótico: aproxima-se indefinidamente, sem jamais esgotar — a não ser por uma graça extraordinária. Isso faz justiça simultaneamente:

à finitude estrutural do nosso conhecimento (como queria Kant);

e à real inteligibilidade do ser, que não é um caos irracional (algo que a experiência fenomenal continuamente manifesta).

A história do pensamento, a comunidade interpretativa, a lenta maturação das ciências, das artes, das religiões e da filosofia são modos pelos quais o fenômeno vai revelando, em camadas, aspectos mais profundos do númeno. Não é que o fenômeno esconda o real; ele o manifesta gradualmente, segundo a capacidade de recepção do sujeito e segundo a evolução histórica da humanidade.


4. Revelação progressiva, mas sempre limitada, do sentido do real

Ao longo da história, novos aspectos do real se tornam visíveis: dimensões éticas, metafísicas, científicas, estéticas. Mas essa revelação nunca é total porque nenhum pensador humano, nenhum sistema filosófico, nenhum método científico consegue assumir o ponto de vista do Intelecto criador — aquele para o qual o sentido do todo está totalmente desvendado.

Para nós, o sentido é sempre participação, nunca posse plena; sempre aproximação, nunca exaustão.


5. O núcleo da proposta

Assim, a distinção fenômeno–númeno pode ser interpretada de maneira teísta e metafísica, sem cair em agnosticismo:

Fenômeno: a maneira como o real se oferece ao intelecto criado.

Númeno: a plenitude inteligível do real tal como é vista pelo Intelecto criador.

Conhecimento humano: processo histórico de aproximação assintótica do sentido último.

Revelação do sentido: nunca total para nós, sempre plena para Deus.

Essa perspectiva permite salvar a crítica kantiana e, ao mesmo tempo, superá-la na direção de uma metafísica participativa: o ser nos é dado, mas dado segundo o modo de nosso intelecto, não segundo a plenitude do intelecto divino.

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