Pular para o conteúdo principal

O ato do conhecimento

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

O ato do conhecimento consiste, segundo Santo Tomás, em que o cognoscente receba em si o conhecido. Mas tal recepção não pode consistir, evidentemente, em receber o ser mesmo do objeto conhecido, uma vez que o objeto conhecido deve permanecer na sua alteridade, no seu ser outro, e não pode ser simplesmente "assimilado" pelo sujeito cognoscente ou transformado nele.

Assim, o que o sujeito recebe do objeto é a sua forma imaterial, que é o meio pelo qual (id quo) o objeto se dá a conhecer ao sujeito. Conhecer, pois, não significa assimilar, transformar ou dobrar o ser do objeto ao sujeito do conhecimento. Ao contrário, é um ato de sumo respeito, em que o objeto permanece no seu ser ser outro, embora seja recebido imaterialmente pelo sujeito.

Sem a relação de alteridade não há conhecimento real. Se o objeto não permanecesse em sua transcendência ontológica em relação ao sujeito, não haveria senão uma criação do sujeito, não o conhecimento do objeto. Grande parte da filosofia moderna sustenta que o sujeito destrói a alteridade do objeto, recriando-o no seu interior. Mas tal posição não corresponda à fenomenologia do conhecimento nem ao impacto que o real provoca no sujeito cognoscente, provocando sempre mais o desenvolvimento do conhecimento. Com efeito, a fenomenologia do conhecimento diz que, sem a dualidade sujeito-objeto, rui-se a essência do ato do conhecimento. Se o sujeito ficasse sempre fechado em si mesmo, não poderíamos dizer que ele realiza um verdadeiro ato de conhecimento. Tal dualidade é confirmada pela experiência e pelo cabedal de conhecimento que a humanidade vai alcançando e desenvolvendo ao longo da história, já que o real a constringe sempre mais a conformar-se à sua forma, que se impõe ao sujeito, não podendo, por isso mesmo, ser uma mera criação sua. 

O conhecimento é também, de outro ponto de vista, uma identificação do sujeito com o objeto conhecido. Aristóteles dizia que a alma, potencialmente capaz de conhecer todas as coisas, é, de certo modo, todas as coisas: anima quodammodum omnia - é uma frase repetida por Santo Tomás. Quando conhece, o sujeito se identifica com o conhecido, isto é, o sujeito prende em si mesmo a forma do objeto e se torna, enquanto sujeito do conhecimento, o próprio objeto. Evidentemente, devemos dizer, não se trata de identificação ontológica, pois um ser não pode se transformar noutro sem deixar de ser o que é. E, no conhecimento, o sujeito identifica-se com o objeto sem deixar de ser, ontologicamente, sujeito, um alter em relação ao objeto. Tal identificação, pois, só pode ser intencional, e se explica pela imaterialidade, que é própria de todo conhecimento. Todo ato de conhecimento requer imaterialidade, em maior ou menor grau, de acordo com a natureza do conhecimento. Tal imaterialidade já desponta nos sentidos e alcança sua mais alta pureza no intelecto. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir