Pular para o conteúdo principal

Livro de Jó

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Você sabe por que foi escrito o livro de Jó? Trata-se de um livro escrito entre o século V e III a.C., e tinha por principal objetivo questionar a teologia da sua época, segundo a qual o sofrimento é consequência direta do pecado pessoal de quem sofre. Em geral pensava-se que a fidelidade a Deus era recompensada nesta vida com bens materiais e familiares, com a boa saúde e a vida longa, e, ao contrário, a infidelidade, punida com o insucesso e as diversas desgraças da vida presente. Não se tinha ainda a fé na vida para além da morte.

O livro apresenta Jó, um homem verdadeiramente fiel a Deus, indicado até mesmo como modelo para os anjos, que, no entanto, de repente e misteriosamente, é duramente provado pela perda de seus bens, de seus filhos, de sua saúde e de sua dignidade. Como entender uma coisa dessas? O livro relaciona o sofrimento do justo Jó a um mistério sobrenatural, a Satanás - este ainda não é o Satanás do inferno como o conhecemos, mas uma espécie de inspetor celeste que tem como ofício observar o comportamento dos homens e acusá-los diante de Deus. Satanás, juntamente com os anjos ou filhos de Deus, tem acesso à presença do Altíssimo e, colocando em dúvida, não a fidelidade de Jó, que era patente, mas as suas reais motivações, pede permissão a Deus para o provar. Por duas vezes Deus concede a Satanás a permissão, e Jó é duramente provado. Sua vida, de uma hora para outra, é como que virada de ponta-cabeça.

O Jó paciente dos dois primeiros capítulos logo cede lugar ao Jó rebelde a partir do terceiro capítulo; ele chega mesmo a amaldiçoar o dia de seu nascimento. O livro não tem medo de mostrar que Jó era humano, demasiado humano, e não um herói que, impassível, tudo suporta, sem angustiar-se. O seu sofrimento o leva, não a ficar calado, mas a confrontar-se duramente com o sentido da própria existência e com o próprio Deus. Jó chamou Deus em causa. Embora mostrasse toda a sua angústia e o seu quase desespero, conservou, no fundo, a fé. Mas era uma fé angustiada e sofrida, que fazia força para encontrar um sentido onde não parecia haver sentido algum. Jó, no fundo, queria falar com Deus. Queria ouvir a Deus.

Os amigos tentavam convencê-lo de que havia uma relação entre os seus sofrimentos e os seus pecados. Chegavam a recomendar a Jó que se arrependesse e pedisse perdão, para que Deus lhe restituísse a felicidade. Mas Jó tinha consciência de que não havia pecado para merecer todo o infortúnio que se lhe abatera. A teologia da retribuição dos amigos estava errada: disso Jó tinha certeza. Jó sofria, mas o seu sofrimento não tinha nada a ver com seus pecados.

Só no final Deus se mostra e fala, e faz ver a Jó a grandeza da criação e o seu profundo mistério. Jó, maravilhado com a sabedoria do criador presente nas suas obras, encontra paz para o seu coração, entregando-se confiantemente nas mãos do Senhor: "Agora te conheci". A aparição de Deus não lhe tirou imediatamente a desventura, mas preencheu o seu sofrimento da presença divina, e isso bastou para trazer paz ao coração de Jó.

No final, Deus restitui a Jó o que ele havia perdido e muito mais.

Lição do livro de Jó: o sofrimento é, antes de tudo, um mistério. As tentativas de abarcá-lo com a nossa limitada razão e de explicá-lo com meridiana clareza sempre falham. O sofrimento nos desestrutura, nos faz chorar, nos angustia. Mas também pode ser uma chance, porque pode nos fazer crescer em profundidade diante da vida e diante de Deus. O sofrimento pode nos amadurecer ajudar-nos a perceber que Deus é sempre maior do que aquilo que pensamos a seu respeito: "Eu te conhecia só por ouvir falar, mas agora os meus olhos te viram" (Jó 42,5).

Sabemos que Deus é bom, e, no entanto, encontra-se o sofrimento em sua obra. Eis o grande mistério! O livro convida a uma entrega amorosa da nossa vida nas mãos de Deus, que, certamente, tem a sabedoria e o poder de superar o sofrimento ainda presente na criação: "Ele domina tudo aquilo que, soberbo, se levanta e é soberano sobre todas as bestas ferozes" (Jó 41,26). Saber que Deus é bom e que está presente no meio de nosso sofrimento para superá-lo juntamente conosco é o que podemos reter com certeza, e isso basta para continuarmos a acreditar na vida e para solidarizar-nos concretamente com os que sofrem, apesar de toda a inquietação a que possamos estar submetidos. Ter fé em Deus é abrir-se à possibilidade de superar o sofrimento todas as vezes que ele aparece em nossa vida.

No Novo Testamento, o mistério do sofrimento é assumido por Cristo, que, a partir do seu interior, o supera e o vence definitivamente. A nossa esperança é a de que toda lágrima será enxugada um dia. Enquanto isso, vivemos a vida, que muitas vezes é dura, na confiança fundamental e na solidariedade com todo o sofrimento do mundo. Cristo nos ensinou a assumir o sofrimento, o nosso e o alheio, e a encaminharmo-nos, assim, para a plenitude das promessas de Deus.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Combater o crime organizado

O combate ao crime organizado no Brasil é, ao mesmo tempo, complexo e simples. Complexo porque envolve múltiplas dimensões — políticas, econômicas, sociais, culturais — e simples porque exige o óbvio: inteligência, coordenação e vontade real de agir. Não há saída fácil, mas há caminhos claros. Um passo irrenunciável é o combate imediato, direto, às ações criminosas. É dever do Estado executar mandados de prisão, desmontar quadrilhas, apreender armas e drogas, e garantir que a lei se cumpra com firmeza e eficiência. Dentro da mesma linha de ação, criar leis mais rigorosas e eficazes, aumentar os presídios, fortalecer a polícia e punir os policiais que se deixam corromper. Mas isso, por si só, não basta. O crime organizado é um sistema, e todo sistema se sustenta por uma estrutura financeira. Desmontar o crime é também seguir o dinheiro: rastrear transações, investigar laranjas, identificar quem lucra com o crime. Certamente, há empresários e políticos que se beneficiam desse esquema, e ...

O título de Corredentora. Por que evitá-lo?

Dizer que o título de Corredentora aplicado a Maria não é tradicional, é ambíguo e deve ser evitado não significa diminuir nem obscurecer o singular papel da Mãe de Deus na história da salvação.  Maria foi ativa na obra da salvação, e o foi de maneira única e no tempo único da encarnação do Verbo, de sua paixão, morte e ressurreição. No entanto, a sua atividade é sempre uma resposta — uma resposta ativa — à graça e à absoluta iniciativa de Deus. O único autor da salvação é Deus mesmo. É o Pai, que envia o Filho e o Espírito. É o Filho, que, enviado do Pai, encarna-se por obra do Espírito e se doa até a morte de cruz, ressuscitando em seguida. É o Espírito do Pai e do Filho, que, enviado por ambos, age na Igreja e em cada coração aberto, humilde e sincero. Isso sempre foi claro para todo católico bem formado.  A disputa sobre a conveniência ou não do título Corredentora gira mais em torno de questões semânticas ou linguísticas do que sobre a importância e o lugar inquestionável...

Memória de Santo Tomás de Aquino

. Homilia proferida por mim na festa de Santo Tomás de Aquino em Missa celebrada no Instituto Cultural Santo Tomás de Aquino, de Juiz de Fora, MG, do qual sou membro. Pe. Elílio de Faria Matos Júnior Prezados irmãos e irmãs na santa fé católica, Ao celebrarmos a memória de Santo Tomás de Aquino, patrono de nosso instituto, desejo reportar-me às palavras que o santo doutor, tomando-as emprestadas de Santo Hilário, escreveu logo no início de uma de suas mais importantes obras, a Summa contra gentes , e que bem representam a profunda espiritualidade do Aquinate e a vida mística que envolvia sua alma. Sim, Santo Tomás, além de filósofo e teólogo, homem das especulações profundas e áridas, era também um santo e um místico, homem da união com Deus. São estas as palavras: “Ego hoc vel praecipuum vitae meae officium debere me Deo conscius sum, ut eum omnis sermo meus et sensus loquatur” , isto é, “Estou consciente de que o principal ofício de minha vida está relacionado a Deus, a quem me ...