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Fé e razão no Ocidente

Deve-se dizer que a problemática que envolve as relações entre Teologia e Filosofia ou fé e razão é de atualidade permanente em nossa cultura ocidental, pois, como sabemos, dois fatores foram constitutivos de nossa civilização: o ideal da razão manifestado na cultura grega e a vida a partir da fé apresentada pelo judeu-cristianismo. Em seu artigo "Metafísica e fé cristã: uma leitura da Fides et Ratio",[1] o filósofo jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz sustenta que os eventos helênico e bíblico, abrindo para a consciência a experiência da Transcendência real, constituíram o "tempo-eixo" de nossa civilização ocidental. Foi exatamente do encontro desses dois fatores que resultou nossa cultura. Não há, pois, como simplesmente ignorar a problemática concernente à relação entre fé e razão.

Pois bem. Surge agora uma pergunta: Por que hoje a relação entre fé e razão, Teologia e Filosofia, encontra-se, na melhor das hipóteses, num impasse? O establishment filosófico atual pretende desenvolver sua(s) racionalidade(s) sem “contaminação” por parte da fé. Do lado da Teologia, também há reticências ao emprego da razão filosófica em seu discurso. Sabemos que a desconstrução das boas relações entre fé e razão, na verdade, teve início já no séc. XIII com a reivindicação por parte mestres da Faculdade de Artes da Universidade de Paris de uma Filosofia totalmente separada da Teologia,[2] o que se acentuou nos fins da Idade Média, sobretudo com Guilherme de Ockham (séc. XIV), e progrediu ao longo de toda a modernidade. O Iluminismo (séc. XVIII), considerado a “Idade da Razão”, pode ser tido como o paradigma da total separação entre as duas formas de saber, em detrimento da fé.

Mas o que, no fundo, provocou tal ruptura? O que mudou? Mudou a Teologia ou mudou a Filosofia? Por que a síntese harmoniosa entre fé e razão, buscada e defendida por espíritos vigorosos e lúcidos, deixou de ser desejada?

Para ensaiar uma resposta a esses questionamentos, permito-me reportar às reflexões de Lima Vaz. Para o filósofo jesuíta, tanto a tradição helênica quanto a bíblica perfizeram a experiência da Transcendência real. A primeira caracterizou-se pelo modelo ideonômico[3], que afirma a Transcendência real do inteligível sobre o sensível. Na segunda, a Transcendência assume a forma de Palavra de Salvação que se dirige ao homem. No primeiro caso, há, como já notamos acima, uma subida da razão finita em direção ao Transcendente; no segundo, uma descida do Transcendente, que deve ser acolhido como graça em atitude de fé. Em ambos os casos, a Transcendência permanece em infinita distância e não pode ser simplesmente "apreendida" pela razão finita. Segundo Lima Vaz, é exatamente essa comum estrutura teocêntrica da razão e da fé que possibilita uma "meta-analogia" ou um logos comum que garante o diálogo entre o logos da fé e o logos da razão.

A modernidade efetivou progressivamente uma passagem da estrutura teocêntrica para a estrutura antropocêntrica da razão, ao deixar de lado a transcendência do ser em favor da imanência do sujeito cognoscente. Houve a transposição da Transcendência real para a transcendência lógica, e o sujeito passou a ter a primazia sobre o ser. Daí ser dito que a razão moderna é essencialmente operacional, já que o operável é do domínio do lógico. Desse modo, a razão fechou-se no círculo de sua finitude, dando origem a um processo de racionalização autônomo, segundo a medida finita da mesma razão humana.

A razão antiga e medieval, tal como a podemos encontrar num Platão, num Aristóteles, num Plotino, num Agostinho, num Tomás de Aquino, possuía um caráter decididamente teológico. O adjetivo teológico aqui, evidentemente, não se refere à teologia revelada, que assume o seu discurso do ato de fé na revelação divina.[4] Por razão teológica entendemos uma certa concepção de razão, segundo a qual, o filósofo, no próprio ato do exercício filosófico, num movimento de anabasis (subida), pode deparar-se com o Princípio de todas as coisas (o divino), ainda que não o possa compreender analiticamente, já que o excesso de sua luz inteligível está para o filósofo como o sol para os olhos do morcego.[5] Lima Vaz chamou essa razão teológica de inteligência espiritual.[6] Por ela, pode-se contemplar, com o que Platão chamou o olho da alma, o Absoluto, que está para além da multiplicidade das coisas e dos conceitos, e que lhes dá verdadeiro fundamento. Não se trata de "dominar" intelectualmente o Absoluto, mas de contemplá-lo, embora por um conhecimento analógico, como terminus ad quem do processo do filosofar. Uma razão assim teológica trabalha com uma concepção analógica do ser, não unívoca. Ela reconhece a transcendência do Ser (o Absoluto) no qual o Inteligente em ato e o Inteligível em ato se identificam,[7] dando fundamento, assim, à inteligibilidade objetiva e radical de todas as coisas.[8] Ela não procura resolver a inteligibilidade radical em suas categorias finitas e limitadas ou dissecar o ser na imanência do sujeito.

Após a síntese de Tomás de Aquino, foi se dando uma passagem progressiva do ser à representação, do pólo objetivo do ser à imanência do sujeito cognoscente. Se o ser, em sua transcendência real, ocupava o centro dos mais altos esforços de especulação, que vão de Platão a Tomás de Aquino, o nominalismo dos fins da Idade Média colocou no centro a representação (ser ut nomen), resolúvel na imanência do sujeito. Descartes, considerado o pai da filosofia moderna, propõe o ponto de partida de sua reflexão filosófica em bases inteiramente imanentistas, de modo que a atenção desloca-se do ser para o sujeito cognoscente, que, trabalhando com um conceito unívoco de ser, é capaz de "domesticá-lo" segundo suas próprias medidas: isso é o que se percebe no ideal, inspirado na matemática, das idéias claras e distintas. Descartes, todavia, depois de lançar os fundamentos em bases idealistas, caminha em direção ao realismo ao reconhecer Deus como o fundamento sem o qual não seria possível o conhecimento.

O caminho do ser à representação atingiu o seu clímax em Immanuel Kant (†1804). Segundo o filósofo de Königsberg, não temos acesso à coisa em si, de tal modo que todo nosso conhecimento é o resultado da aplicação das formas a priori do Eu penso ao dado sensível. O conhecimento é, assim, construção do sujeito. O dado sensível apenas oferece uma matéria que vai ser informada pelas estruturas imanentes do sujeito cognoscente, resultando disso que o que se conhece é aquilo mesmo que o sujeito põe, ficando vedado todo acesso ao ser como tal. Temas metafísicos como Deus e a alma já não podem ser tratados pela razão teórica, pois que a pretensão de um conhecimento metafísico representa uma transgressão ilegítima da razão para fora do domínio do dado sensível.


Hegel ainda tentou recuperar o vigor metafísico da razão ao construir seu sistema como sistema do Espírito Absoluto, embora o tenha feito no clima da subjetividade, próprio da Filosofia moderna. Depois de Hegel, entretanto, qualquer tentativa de discurso metafísico foi condenado pelo establishment filosófico ao nonsense. A metafísica foi simplesmente banida como espúria e ilegítima. E a Filosofia como que se reduziu a uma ciência entre as outras.

A razão assim entendida, a razão que se resolve apenas na imanência do sujeito sem se abrir à transcendência do ser e, consequentemente, à Transcendência real, não oferece possibilidade da circulação de um logos comum entre razão e fé. Desse modo, o diálogo entre as ambas atinge, não propriamente um impasse, mas a exaustão.[9]

Sim; a concepção de razão, no arco histórico que vai do ser à representação, restringiu-se de tal maneira que o racional passou a ser considerado apenas o que pode ser enquadrado nos limites da razão humana finita, o que pode ser medido pela inteligência finita, o quantificável. Com acerto, Lima Vaz fala de uma transposição da Transcendência real para a transcendência lógica. A razão esqueceu-se de sua abertura para o infinito, para o Ser em sua alteridade, e ficou presa nos limites da finitude, restando-lhe apenas lidar com os fenômenos, sem conseguir lançar o olhar para o fundamento.

Ora, só uma razão aberta para o ser pode dialogar com a fé. Uma razão fechada no círculo de sua finitude é incapaz de lançar-se para o Princípio e garantir aquela “meta-analogia” entre fé e razão de que fala Lima Vaz. Em outras palavras: sem a consideração da Transcendência real, a fé e a razão não podem encontrar o elemento que garanta a base do diálogo entre ambas.


[1] LIMA VAZ, Henrique C. de. Metafísica e fé cristã: uma leitura da "Fides et Ratio". Síntese. Revista de Filosofia. Belo Horizonte, v. 26, n. 86, p. 293-305, 1999.
[2] Id. Escritos de Filosofia VII. Raízes de modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.
[3] Esse termo pode ser entendido como característico do modelo filosófico em que o universo é explicado pela força unificadora do inteligível, que, por sua vez, não se reduz à imanência do sujeito cognoscente.
[4] "Sic igitur theologia, sive scientia divina, est duplex. Una... est theologia quam philosophi prosequuntur quae alio nomine metaphysica dicitur; alia vero... est theologia, que in sacra Scriptura traditur" (Tomás de Aquino, In Librum Boethii de Trinitate, q. 5, a. 4).
[5] Citando Aristóteles, Tomás de Aquino realça esta verdade: "O nosso intelecto está para as primeiras noções dos seres, que em si mesmas são evidentíssimas, como os olhos do morcego para o sol" (Summa contra gentiles I, c. III).
[6] Cf. VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica I. Loyola: São Paulo, 1991, p.239-289..
[7] Veja o que diz Tomás de Aquino, apontando Deus como a realização plena da coincidência entre inteligente e inteligível em ato: "Efetivamente, a intelecção é ato do sujeito inteligente, nele existindo, e que não se transmite a uma coisa extrínseca, como acontece com o aquecimento, o qual se transmite ao que é aquecido. Assim, o objeto da intelecção não recebe coisa alguma por ser apreendido, mas o sujeito inteligente é que é aperfeiçoado. Ora, tudo que está em Deus identifica-se com sua essência. Logo, a intelecção de Deus é a própria essência divina, o ser divino e o próprio Deus, já que Deus é sua essência e seu ser (como foi provado)" (Summa contra gentiles, I, c. XLV).
[8] Eis um texto esclarecedor de Pierre Secondi sobre a inteligibilidade das coisas, inteligibilidade que, em última análise, funda-se na identidade, no Ser infinito, do inteligente e do inteligível: "Há muito tempo que Aristóteles justificou esta relação matéria-espírito: se a inteligência procura o espírito nas coisas mais comuns é porque ela sabe que o espírito se encontra nelas, porque tudo o que existe é a realizaão de uma idéia. Uma mesa não seria o que ele é se o carpinteiro não tivesse na cabeça a idéia de mesa, qualquer que seja a matéria utilizada. Se me permitem uma comparação belicista, a inteligência funciona como a ogiva dos novos mísseis que sabe onde está o seu alvo e como penetrar no íntimo dele. Longe de estar em oposição, matéria e espírito coincidem nas realidades. O que o filósofo chama de ordem real e ordem ideal é correlativo, segundo a fórmula um tanto solene de nossos mestres: Tudo o que existe é pensável, tudo o que é pensável pode existir; inversamente, o que é impossível nas coisas reais, um círculo quadrado por exemplo, é impossível no espírito" (SECONDI, Pierre. Philosophia perennis. Atualidade do pensamento medieval. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 24).
[9] Cf. VAZ, art. cit., p. 302.

Comentários

  1. Sem Wiler Geraldo da Silva1 de julho de 2010 às 11:10

    Padre Elílio ajude a divulgar a comunidade no Orkut sobre o livro do Thomas E. Woods " Como a Igreja católica construiu a civilização ocidental, Dom Antônio Rossi keller é co-proprietario e moderador.... vamos tornar este livro popular para que os católicos silencie diante das maiores brbaridades e injustiças contra a igreja.... devemos nos defender com a verdade! e o testemunho.

    aqui o link da comunidade

    http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=97652466


    por favor ajude a divulgar para muitas pessoas participarem... e parabéns pelo blog... muito bom...

    Seminarista Wiler Geraldo da Silva, Diocese de São João del-Rei- MG

    ResponderExcluir
  2. Muito bom, Padre. Aprecio muitos os textos do senhor.

    Sua bênção.

    Fábio.

    ResponderExcluir
  3. ...traigo
    sangre
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    la
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    Y AULA DE PAZ


    TE SIGO TU BLOG




    CON saludos de la luna al
    reflejarse en el mar de la
    poesía...


    AFECTUOSAMENTE
    PADRE ELÍLIO

    ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DEL FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER Y CHOCOLATE.

    José
    Ramón...

    ResponderExcluir
  4. Prezado Elílio,

    Parabéns pela clareza de tua escrita.
    Tal temática é de grande importancia prática na vida das pessoas (mesmo que de forma indireta) e precisa ser amplamente discutida.
    Me atentei em especial: "a pretensão de um conhecimento metafísico representa uma transgressão ilegítima da razão para fora do domínio do dado sensível"
    Ora, propor uma metafísica nem sempre significa transgredir o domímnio do dado sensível uma vez que o domínio do sensível ainda não está totalmente descrito e pode ampliar-se.
    Antes falavamos que o átomo era a menor partícula e atualmente já conhecemos partículas ainda menores por termos melhorado a nossa capacidade de avaliar o sensível.
    Quem nos garante que o sensível conhecido é todo o sensível que existe?
    Recentemente conversava com um grande físico amigo meu, quando o mesmo mencionou que para ele só existe o que pode ser medido.
    Eu então lhe questionei sobre o grau primitivo das escalas existentes. Se AINDA não conseguimos medir não podemos dizer que não existe. Só pode-se concluir logicamente que AINDA não se faz mensurável.
    A ciência tem muito de fé, pois para dedicar a vida a ela é preciso acreditar que é possivel descobrir o que está coberto pelo véu da ignorancia.
    O Senhor considera que mencionar o limite da aferição do sensível é um argumento válido em favor da metafísica?
    Com orações...

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