Pular para o conteúdo principal

O Homem, criatura especial de Deus

.
Padre Elílio de Faria Matos Júnior

A Revelação bíblica propõe ensinamentos a respeito da origem e da natureza do Homem na medida em que interessam ao mistério da salvação. Por isso, não se pode procurar na Sagrada Escritura uma antropologia acabada e rigidamente sistematizada. Os dados que aí encontramos, contudo, dão as coordenadas fundamentais para que possamos elaborar uma ontologia teológica do Homem. Tais dados, convém notar, não estão em contradição com aquilo que se pode saber sobre o Homem por via natural, embora o ultrapasse.

O Homem, antes de tudo, é um mistério. Deus é o mysterium tremendum ac fascinosum; o Homem, criado à sua imagem e semelhança , é misterioso e também fascinante, na medida em que se assemelha a Deus por sua vida espiritual ou por seu caráter pessoal, isto é, por sua consciência, inteligência e liberdade. Com efeito, já dizia o Concílio Vaticano II: "O homem, na verdade, não se engana quando se reconhece superior aos elementos materiais e não se considera somente uma partícula da natureza ou um elemento anônimo da cidade humana" (Gaudium et spes, 14).

O Homem, com efeito, como já vira muito bem Pascal, ultrapassa infinitamente a si mesmo. Se por sua dimensão corpórea reduz-se a um ínfimo ponto perdido no cosmo, por sua dimensão espiritual é capaz de abarcar o universo inteiro e ir além; é capaz do infinito, no sentido de que é capaz de pensar o infinito, porque se abre à universalidade do ser. Nenhuma categoria finita pode limitar a capacidade humana de pensar. Assim, nenhum ser finito é capaz de impor limites ao dinamismo do espírito humano.

Desse modo, em virtude de sua dimensão espiritual, o Homem é um ser de relações. Está aberto ao infinito. Uma vez que é capaz de se ultrapassar, é capaz de relacionar-se consigo mesmo, com o mundo, com os outros e com Deus. É claro que a relação com Deus, na presente vida, só pode ser uma relação mediada, uma vez que não temos intuição imediata de Deus.

A Sagrada Escritura acentua, por diversos modos, a singularidade do Homem em relação às demais criaturas. Um dos textos mais significativos é, sem dúvida, este, em que Deus aparece solenizando a feitura do Homem:
Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra, sobre os répteis que se arrastam sobre a terra. Deus criou o homem à sua imagem; ele criou-o à imagem de Deus, e criou-o homem e mulher (Gn 1,26ss.).

Temos a impressão de que o autor sagrado se emociona ao escrever sobre verdades essenciais a respeito do Homem: a dignidade nativa, seja pela sua origem em Deus, seja por sua natureza diviniforme; a vocação régia; a complementaridade dos sexos e sua comum dignidade.
.
O autor do Salmo 8 também se admira ao considerar, por um lado, a pequenez do Homem em comparação ao universo criado, e, por outro, a dignidade de que é portador, uma vez que Deus se interessa particularmente por ele e lhe confiou a missão régia:
Ao ver o céu, que é obra de teus dedos, e a lua e as estrelas que plasmaste, que somos nós? E do homem tu te lembras e com o filho do homem te preocupas [...]. Pouco menor que os anjos o fizeste, de glória e esplendor o coroaste, das tuas obras deste-lhe o governo
A narrativa sacerdotal da criação apresenta-nos o hexâmeron; aí Deus se admira, a cada dia, depois de cada obra que fazia. No fim de cada dia, Deus aparece contemplando a criação: "Deus viu que isso era bom". Ao final do sexto dia, quando Deus contempla a sua obra coroada pela criação do Homem, o hagiógrafo faz questão de acrescentar um advérbio de intensidade: "Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom" (Gn 1,31, grifo nosso) . O adjetivo bom pode ser entendido como belo também, uma vez que as noções de bom e belo convergem entre si. O olhar de Deus, na verdade, é a causa da bondade/beleza das criaturas, entre as quais o Homem ocupa um lugar especial. A Beleza em si comunica-se na obra da criação e, de modo especial, no Homem, criado à sua imagem e semelhança.

Em suma, toda a Sagrada Escritura, desde o Gênesis ao Apocalipse, é o registro da ação de Deus que quer relacionar-se de modo especial com o Homem. O Vaticano II refere-se ao Homem como "a única criatura na terra que Deus quis por si mesma" (Gaudium et spes, 24). Do Homem, Deus sempre espera uma resposta. E a resposta que Deus espera coincide com a auto-realização humana. Vontade de Deus e realização humana coincidem, de modo que não existe felicidade e beleza humana sem Deus: "A glória de Deus é o homem vivo; a vida do homem é a visão de Deus" (Santo Ireneu, Contra as heresias, livro IV). O Homem, imagem e semelhança de Deus, está orientado para a Beleza infinita, ainda que, por suas próprias forças, não possa atingi-la.

Deus quer que em Cristo e por Cristo, o centro e a plenitude da Revelação, o Homem participe de forma intensa e inacessível às forças puramente naturais, de sua própria vida e felicidade, contemplando face-a-face a Beleza em si. Isso nos leva a dizer, salvaguardando a unicidade do plano de Deus, que, já desde a criação, desde que o Homem é Homem, há nele uma orientação para Deus, para a Beleza infinita, orientação essa que encontra em Cristo o verdadeiro caminho de sua realização. Jesus, enquanto homem, é o caminho que nos conduz à visão imediata de Deus, visão oferecida por Deus mesmo, como graça, àqueles que se incorporam a seu Filho amado.

Comentários

  1. Que meditação cheia de orvalho de Deus!!!

    Ó beleza! Ó bondade! Ó docura!
    dizia São Bruno.

    ResponderExcluir
  2. Òtimo texto!
    Parabéns pela clareza e simpicidade em nós mostrar a verdade de Deus para o homem. Ah!Se todos nós soubessemos o quanto podemos fruir das inexploráveis riquezas de Cristo, como dizia São Paulo, através das Sagrada Escritura.

    ResponderExcluir
  3. Texto claro e preciso.
    Realmente, o homem é a maravilha de Deus.
    Tirado do amor de Deus Pai e incerido na dignidade por Deus Filho.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Infalibilidade e indefectibilidade da Igreja

Infalibilidade e indefectibilidade: distinção, exemplos e formas de exercício A doutrina católica distingue entre a indefectibilidade e a infalibilidade da Igreja. Pela indefectibilidade, a Igreja recebeu de Cristo a promessa de que não pode trair a fé. Trata-se de um carisma de fidelidade que assegura que, apesar dos pecados de seus membros e das limitações históricas de suas expressões, a Igreja não falhará no essencial da transmissão do Evangelho. Já a infalibilidade é a forma especial e qualificada desse dom: em certas condições, a Igreja pode definir de maneira irreformável uma doutrina de fé ou de moral, seja por um ato solene, seja pelo testemunho constante do Magistério Ordinário Universal. Na indefectibilidade, encontramos exemplos de como a Igreja, ao longo da história, protegeu o núcleo da fé mesmo quando utilizou formulações que, mais tarde, se tornaram ultrapassadas. Assim aconteceu, por exemplo, com algumas condenações medievais de teses filosóficas ligadas ao aristotelis...

Metafísica essencial

Cornelio Fabro foi quem realçou a centralidade do ser como ato intensivo na metafísica de S. Tomás  Metafísica essencial:  1. Ipsum Esse É a perfeição máxima formal e real. Ato puro. Intensidade máxima. É participável pelas criaturas através de essências limitadas e da doação de ser como ato a tais essências.  • O ipsum Esse subsistens é a plenitude formal e atual do ser. Não é apenas a perfeição máxima “formal” no sentido lógico, mas o ato mesmo da atualidade infinita.  • Fabro enfatiza que o Esse divino é incomunicável em si mesmo (ninguém nem nada pode possuir ou receber a infinitude divina), mas é participável secundum quid , na medida em que Deus doa o ser finito às essências criadas.  • Aqui está a raiz da analogia entis : há continuidade (participação) e descontinuidade (infinitude divina versus finitude criada). ⸻ 2. Essência ( esse ut participabile ) É o ser enquanto participável, receptivo, em potência. Em si não é atual, mas uma capacidade de atuali...

A noção de ser na metafísica de João Duns Scot

Com base nos três artigos de Hilaire Mac Donagh publicados entre 1928 e 1929 na Revue néo-scolastique de philosophie , é possível compor um resumo contínuo e estruturado da análise feita pelo autor sobre a noção de ser na metafísica de João Duns Scot, com atenção especial às críticas desenvolvidas ao longo do estudo. ⸻ A noção de ser na metafísica de João Duns Scot , segundo Hilaire Mac Donagh 1. A centralidade do conceito de ser Hilaire Mac Donagh inicia sua análise destacando a importância do conceito de ser como núcleo organizador da metafísica de Duns Scot. Tal como em Aristóteles e na tradição escolástica, o objeto próprio da metafísica é o ente enquanto ente (ens inquantum ens), e Scot segue essa orientação, atribuindo à metafísica a tarefa de conhecer o ser e seus atributos transcendentais. No entanto, ao aprofundar a concepção scotista do ser, o autor observa uma particularidade essencial: a insistência de Scot na univocidade do conceito de ser, inclusive quando aplicado a Deus...