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Crise de sentido e crise ética

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Vejamos, pois, como a crise de sentido e a crise ética, que parecem condensar a crise vivida pela modernidade, referem-se, em última análise à crise metafísica ou à rejeição do Fundamento transcendente, cuja irradiante luz brilhou inconfundível na metafísica tomásica do esse. Assim, pretendemos mostrar que, segundo Padre Vaz, em se tratando de identificar a grande causa da crise da modernidade, é preciso, antes do mais, descer “às raízes metafísicas do problema”.[1]

Crise de sentido e crise ética, na verdade, estão intimamente relacionadas. O “sentido”, tal como aqui o consideramos, tem um caráter existencial, e refere-se ao “sentido da vida” ou “sentido da existência”. Ora, a existência do sujeito é “essencialmente orientada para os fins que ele se propõe ou para os quais é naturalmente movido”.[2] A Ética é a ciência do ethos[3] enquanto este, como a face axiológica da cultura, propõe-se a fornecer os valores e traçar as finalidades da vida humana, respondendo à pergunta: “Como devemos viver?”. Desse modo, sentido da existência, ethos e Ética estão mutuamente entrelaçados.

A crise de sentido vivida hoje pela modernidade liga-se, segundo Padre Vaz, à fundação de uma nova razão, que, tendo dado seus primeiros ensaios no século XIV com a primazia dada à representação em detrimento do ser, aparece explicitamente no século XVII com o ideal do método empírico-formal da ciência galileana regido pela racionalidade matemática, considerado o método científico tout court.

À razão clássica, ao contrário, era dado contemplar desinteressadamente o ser, maravilhar-se com ele, e reconhecer no ser valores e normas de conduta. O homem antigo prendia-se ao Todo, “seja este o Todo do cosmos invisível e transcendente das idéias como no platonismo ou o Todo do cosmos visível e imanente da Natureza como no estoicismo”.[4] O homem cristão, por sua vez, girava em torno Centro absoluto, que é Deus. Em ambos os casos, a fonte última de sentido e de valor não era o homem mesmo, mas uma realidade que lhe era transcendente.

Ora, tendo sido desfeita, no horizonte da modernidade, a distinção aristotélica entre conhecimento teórico, conhecimento prático e conhecimento poíetico em favor deste último, a capacidade de contemplação do ser e de reconhecimento de valores e normas para a vida viu-se comprometida. Acontece, então, que a modernidade acabou por tirar do homem qualquer sustentação transcendente, confinando Deus para o âmbito do privado ou do sentimento e submetendo a Natureza ao domínio da thécne. E a proposta moderna de um indivíduo universal – o “filósofo” da Ilustração, o citoyen revolucionário, o burguês progressista ou mesmo o “homem sem qualidades” (R. Musil) – desenraizou o homem do chão de seu ethos.[5] Privado de um ethos ou da alma de uma cultura viva, na qual podia encontrar valores e normas transcendentes, o homem moderno passou a fundar-se sobre si mesmo, tendo a si mesmo como fonte última do conhecimento e da práxis. O conhecimento passa a ser simplesmente poíesis humana, não podendo haver nenhuma realidade transcendente que o oriente:

Com efeito, sem Deus e sem Natureza, o primeiro confinado à esfera subjetiva do sentimento, a segunda lentamente devorada pelo apetite insaciável do organismo da tecnociência no seu crescimento aparentemente sem fim, onde poderia encontrar o homem da modernidade uma estrela polar para a sua rota?[6]

O homem moderno, na verdade, não pode ver nenhuma luz que o ilumine, a não ser a luz que ele mesmo possa fazer brilhar. Entretanto, estas são luzes precárias e passageiras, de modo que se pode afirmar que no horizonte da modernidade não há “nenhuma nuvem luminosa, como aquela que precedeu o caminho de Moisés no deserto. As que se apresentaram como tais – Ilustração, Progresso, Sociedade sem classes, Sociedade da afluência – uma a uma se dissiparam deixando um céu vazio”.[7]

O grande paradoxo atual consiste no fato de que, de um lado, a civilização ocidental tornou-se, de algum modo, uma civilização universal: seu raio de influência estendeu-se a todas as regiões habitadas da terra através de sua ciência, sua técnica, suas idéias, seu estilo de vida... A economia globalizada não é outra coisa senão um modo de efetivação universal do modelo ocidental de razão operacional. De outro lado, no entanto, verifica-se a incapacidade de criar um ethos correspondente a tal universalização. Com razão, pergunta Padre Vaz:

Onde buscar a origem desse trágico paradoxo de uma civilização sem ética ou de uma cultura que, no seu impetuoso a aparentemente irresistível avanço para a universalização, não se faz acompanhar pela formação de um ethos igualmente universal, expressão simbólica das suas razões de ser e do seu sentido?[8]

A reflexão vaziana sobre a dialética do mesurante-mesurado[9] propõe-se dar-nos uma chave de leitura da crise ética da modernidade. Tal reflexão leva-nos a considerar três momentos dialeticamente articulados no processo que rege a constituição da práxis humana. Primeiramente, somos levados a reconhecer a dualidade estrutural existente entre ou o sujeito e o objeto da práxis (que é o agir) ou entre o sujeito e objeto da poíesis (que é o fazer). O primeiro momento da dialética mensurante-mensurado consiste em reconhecer a primazia do sujeito sobre o objeto de seu agir ou de seu fazer. O sujeito é o mensurante, o objeto, o mensurado. O ser natural do objeto é negado para ser restituído segundo a significação que lhe confere o sujeito. Já o segundo momento é constituído pela primazia do objeto, que, operando uma negação da negação, impõe ao sujeito a significação recebida no primeiro momento da dialética, isto é, impõe ao sujeito a sua verdade. Desse modo, o objeto significado, em virtude da necessidade inteligível que lhe é inerente, nega a contingência puramente empírica da atividade do sujeito, tornando-se-lhe mensurante. No caso da práxis, que aqui nos interessa, o terceiro momento se dá pela suprassunção dessa oposição dialética entre sujeito e objeto ou entre mensurante e mensurado, suprassunção que constitui o ethos ou o espaço propriamente humano da práxis. Assim, graças a essa dialética, a práxis humana não fica suspensa no vazio do arbítrio individual ou na simples empiria do objeto, mas lança suas raízes no solo firme do ethos, que trata de fundamentá-la por sanção religiosa ou sapiencial ou pelas lições da Ética. A aparição da Ética como ciência do ethos, criação do gênio grego, assinalou uma etapa significativa. Pela Ética, o ethos é submetido às exigências, reconhecidas pela razão, do finalismo do bem.

O que Padre Vaz quer nos dizer com tudo isso, em última análise, é que os indivíduos ou as sociedades pré-modernos prendiam-se, em seu agir, a um fundamento superior que lhes apontava os valores, as normas e os fins e que suprassumia seja o teor empírico dos objetos, seja a contingência do agir individual:

A transcendência desse fundamento, afirmada na sanção religiosa e sapiencial do ethos nas sociedades tradicionais, ou traduzida na conceptualidade filosófico-teológica do ethos como Ética (o Bem ou os bens em Platão e Aristóteles, a Natureza estóica, o Deus pessoal cristão), assegurou ao pensamento ético clássico uma formulação satisfatória da síntese que deve unir a primazia respectiva da práxis e da realidade, no exercício da dialética do mensurante e do mensurado.[10]

A transformação operada na modernidade constitui-se no sentido de imanentizar o fundamento transcendente que assegurava a síntese dialética da oposição entre a práxis humana e o mundo. Padre Vaz refere-se a essa transformação como “uma das mais radicais transformações da auto-compreensão do homem ao longo de sua história [...]”.[11] Desse modo, a práxis humana, privada de um fundamento que lhe dê sustentação e orientação, vê-se fundada sobre si mesma, de tal modo que se pode falar de uma “absolutização do momento mensutante que compete à práxis”.[12]

Nesse mesmo sentido, o pensamento político moderno, ao atribuir a primazia ao indivíduo na sua particularidade psiquicobiológica, faz da vida social e política um momento segundo e, de alguma maneira, extrínseco ao próprio indivíduo. Este, na sua impossibilidade atender a todas as suas necessidades ou com o intuito de garantir a própria sobrevivência, é forçado a negar seu estado de natureza e aderir ao pacto social. O Direito moderno, desse modo, longe de buscar a fundamentação das leis na normatividade dada por um fundamento transcendente (o que Padre Vaz chama de modelo nomotético), enquadra-se numa dinâmica segundo a qual a validade das leis se justificam tão-somente por garantir ao indivíduo a sobrevivência satisfatória, dada a hipótese do estado de natureza, do qual a sociedade seria, a um só tempo, a negação e a continuação (modelo hipotético).[13]

No âmbito da prioridade do indivíduo sobre a comunidade ética, um dos problemas que se apresentam é o do reconhecimento. Como reconhecer no outro, numa relação de reciprocidade, a sua dignidade nativa de portador de direitos e deveres, fundada na natureza humana em sua socialidade constitutiva, se cabe ao indivíduo a prioridade lógica e axiológica sobre seu existir comunitário? A comunidade, nesse caso, não passa de um resultado, já que não é vista como princípio e fundamento da universalidade ética. A incapacidade de um verdadeiro reconhecimento, “abre caminho para a dramática anomia ética que reina nas sociedades modernas e, com ela, para a instauração do hobbesiano ‘estado de natureza’ do bellum omnium contra omnes [...]”.[14]

Mesmo as tentativas contemporâneas de estabelecer uma universalidade ética, como as éticas contemporâneas do discurso ou da transcendentalidade, são vistas por Padre Vaz como uma nova edição da racionalidade moderna, que tem na absoluta autonomia do sujeito ou no pólo lógico (não metafísico) o seu fundamento último. Com efeito, outra coisa não pretendem senão articular a autonomia do sujeito como princípio e a universalidade da razão como forma.[15] A meta é conseguir universalizar, a partir da autonomia reconhecida do sujeito, a razão ética, seja pelo discurso, seja pela transcendentalidade da linguagem. Tal dinâmica envolve, assim, o exercício de uma razão calculadora. Mas a essência ética do homem, como bem viu Aristóteles, não se deixa manifestar pelo exercício de uma razão calculadora, procedimental ou meramente pragmática. Assim tais modelos éticos, na visão de Padre Vaz, deixam sem solução “o problema fundamental da Ética, qual seja o do ‘tornar-se bom’ do sujeito através do exercício permanente da sua ‘razão prática’ como phronesis ou ‘razão reta’ (orthòs logos)”.[16]

Ora, Padre Vaz está convencido de que o sentido da vida só pode nascer quando a inteligência e a liberdade humanas, operando em sinergia, tornam-se consentimento ao ser e ao bem.[17] A grande contradição vivida pelo homem moderno está justamente no fato de pretender, como ser finito e situado que é, alçar-se ao vôo de infinito alcance ontológico com o fito de alcançar o status de criador do sentido absoluto ou de mensurante absoluto do valor. O sentido da vida não pode alimentar-se da pretensão titânica que reivindica autonomia absoluta para o homem finito. Se o sentido não se prende a uma realidade transcendente, o homem só pode ver no sentido construído por ele mesmo a marca da sua finitude e fragilidade, isto é, não pode contemplar, em última análise, do autêntico sentido da vida.

A crise de sentido e a crise ética da atualidade encontram suas raízes na crise do fundamento transcendente ou na crise metafísica. As sociedades tradicionais encontravam tal fundamento no ethos sancionado por uma visão religiosa ou sapiencial; o nascimento da Ética em solo grego inaugurou a urgência de sancionar o ethos segundo as exigências da razão crítica, que, em sua forma clássica, não se fechava no círculo de sua finitude, mas era abertura para o transcendente (o Bem, o Lógos atuante na Natureza, Deus). A modernidade com sua nova forma de razão, essencialmente operacional, desenraizou o homem do ethos e reivindicou para ele o fundamento de sua própria práxis. Os resultados extremos, mas conseqüentes, dessa enorme pretensão moderna são os discursos niilistas atuais, que proclamam a ausência de valor, de normas e de fins para a aventura humana sobre a face da terra.


[1] EF III, 242. [2] EF III, 154. [3] “Com efeito, a Ética não é senão a explicitação das razões implícitas no ethos de uma determinada cultura para organizá-las sistematicamente e criticamente na forma de uma ‘ciência do ethos’” (ERM, 69-70). [4] EF III, 105. [5] Cf. EF III, 125-126. [6] EF III, 113. [7] EF III, 128. [8] EF III, 130. [9] Cf. EF II, 36-40; EF III, 132ss. [10] EF III, 133. [11] EF III, 133. [12] EF III, 134. [13] Cf, EF II, 161ss. [14] EF III, 149. [15] Cf. ERM, 73ss. [16] ERM, 75. [17] “A liberdade é, no homem, o ligar do nascimento do sentido na medida em que, operando em sinergia com a razão no seu uso contemplativo, torna possível o exercício da inteligência espiritual, na qual ela é, fundamentalmente, consentimento ao bem, sendo consentimento ao ser” (EF III, 172).

Comentários

  1. Sou André Luiz, ex-seminarista e ainda em fase de discernimento vocacional residente em Brasília-DF.
    Excelente texto Padre Elílio, o senhor está de parabéns por esta riqueza. Acredito também que o homem moderno perdeu o seu foco, ou melhor, o foco está em si mesmo e nas facilidades que o mundo moderno oferece.
    Podemos completar dizendo que as novas religiões e seitas evangélicas sejam um dos reflexos de toda esta crise, com a qual a Igreja ainda tenta se adaptar pois é tudo muito novo.
    É por estas e outras que ainda pretendo voltar ao seminário e me tornar um sacerdote: para dar testemunho destas verdades que o senhor colocou neste texto e também ajudar toda Igreja a enxergar também toda esta crise.

    Abraço!

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  2. Prezado André Luiz,
    Continue firme neste bom propósito de defender e propagar a fé católica, na qual devemos viver e morrer.

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  3. Padre Emílio gostaria muito de saber as refrencias bibliograficas deste texto escrito pelo senhor, quero aprofundar pois admiro muito seu trabalho!

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  4. meu nome é Adriano Soares,sou seminarista da arquidiocese de Belo Horizonte.
    Pe.Elilio gostei muito do seu texto e gostaria muito de falar sobre a crise de sentido em minha mono grafia de filosofia pois a partir do momento que o homem tira Deus como sentido para sua vida ele entra em uma crise de sentido.gostaria de saber do senhor que filosofo cristão que especifica melhor esse meu pensamento. sua benção

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