Pular para o conteúdo principal

Provações de Madre Teresa de Calcutá

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Ainda não faz muito tempo, a imprensa divulgou o conteúdo de cartas que Madre Teresa de Calcutá escreveu durante 66 anos a colegas e superiores. Aliás, tal conteúdo é tema do livro Mother Teresa: Come Be My Ligth, cuja tradução em língua portuguesa já foi publicada. Nas cartas, Madre Teresa fala da aridez espiritual pela qual passou, do sentimento experimentado de que Deus a havia abandonado, do perturbador silêncio de Deus em sua vida. O fato assustou a muitos, pois que se puseram a perguntar: "Como pode uma religiosa como Madre Teresa, que se entregou totalmente ao serviço de Deus, passar por tormentos na vida espiritual?", ou ainda: "Terá Madre Teresa duvidado da existência de Deus?"

As provações na vida espiritual não são desconhecidas dos santos. O que Madre Teresa expressou em suas cartas é bastante conhecido entre os grandes mestres da vida espiritual. E não nos devemos escandalizar com isso. Deus tem seus caminhos para conduzir o homem à santidade perfeita, caminhos que não são os nossos, conforme o dizer da Escritura: "Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e os vossos caminhos não são os meus caminhos, diz o Senhor" (Is 55, 9). Uma grande alma, bem próxima de nós, que também passou por provações terríveis na vida espiritual, foi Santa Teresinha do Menino Jesus.

São João da Cruz (séc. XVI), um dos maiores místicos da Igreja, ensina que sem "noites escuras" não se pode aproximar de Deus como convém. "Noite escura" é o termo que o santo doutor achou para, metaforicamente, falar do processo de purificação da alma, que se dá na obscuridade da fé e que nos dispõe para o matrimônio místico com o Senhor. Na noite chamada ativa, a alma age auxiliada pela graça no sentido de renunciar a tudo que não é Deus, o que não se faz sem dor e provação. Mas a noite ativa apenas prepara a segunda noite: a passiva. Na noite passiva, a alma, sem nada fazer, sofre de modo inusitado um influxo especial de Deus que, como fogo ardente de caridade, a queima e purifica; é nesta purificação passiva que a alma enfrenta as maiores provações, já que o fogo divino nela procura queimar tudo o que é amor próprio e todo apego desordenado às criaturas, para que ela se esvazie de tudo o que não é Deus, e, na completa pobreza espiritual, deixe espaço para que Deus seja o seu Tudo. Nessa noite escura passiva, a alma vive exclusivamente da fé, da pura obscuridade da fé, sem auxílio algum dos sentidos e sem consolação do espírito; aliás, vive com grande sofrimento e aridez, porque o fogo divino consome as raízes mais profundas do orgulho. Mas vive na fidelidade. Quando a alma atinge a completa pobreza e nudez espiritual, parece-lhe que até Deus a abandonou.

Ora, o que sucedeu com Madre Teresa de Calcutá foi algo semelhante. Ela passou, para usar a terminologia de São João da Cruz, pela noite passiva. E, embora não encontrasse auxílio nos sentidos nem no espírito, viveu perfeitamente a sua fé. Isso nos mostra que a fé não se reduz jamais a um sentimento, a uma emoção, nem mesmo à consolação espiritual. A fé é muito mais. Em última instância, a fé é um ato da inteligência e da vontade que se firmam em Deus, mesmo quanto tudo parece forçar em direção contrária. Mesmo na aridez e no tormento da nudez espiritual, mesmo sentindo o abandono e o silêncio de Deus, Madre Teresa não renunciou a Cristo. "O amor não consiste em sentir grandes coisas senão em ter grande desnudez, e padecer pelo Amado", dizia São João da Cruz. As atitudes de Madre Teresa de fidelidade a Deus até a morte e de dedicação plena aos necessitados por amor a Deus mostraram que, embora não tivesse motivações sentimentais ou consolações espirituais para ser fiel, ela foi capaz de se manter fiel na obscuridade da pura fé, isto é, foi capaz de caminhar na densa noite na esperança da aurora que Deus lhe reservava. Deus assim a preparava para a suprema união mística...

Comentários

  1. muto bom seu texto Elílio.. Realmente penso que Madre Teresa deva ser um exemplo de vida para nós. E concordo com sua posição sobre a fé.

    ResponderExcluir
  2. Não se faz a escolha de Deus sem antes questionar se essa é a escolha a ser feita.
    A Madre teve a fé mais bela e inquestionável a fé em obras.

    ResponderExcluir
  3. "A verdadeira religião é assistir aos órfãos e viúvas nas suas aflições..."(Tg 1, 27).
    Beata Madre de Calcutá, rogai por nós!
    Dia 19 agora, sua festa!
    Abç...Jayme

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Metafísica essencial

Cornelio Fabro foi quem realçou a centralidade do ser como ato intensivo na metafísica de S. Tomás  Metafísica essencial:  1. Ipsum Esse É a perfeição máxima formal e real. Ato puro. Intensidade máxima. É participável pelas criaturas através de essências limitadas e da doação de ser como ato a tais essências.  • O ipsum Esse subsistens é a plenitude formal e atual do ser. Não é apenas a perfeição máxima “formal” no sentido lógico, mas o ato mesmo da atualidade infinita.  • Fabro enfatiza que o Esse divino é incomunicável em si mesmo (ninguém nem nada pode possuir ou receber a infinitude divina), mas é participável secundum quid , na medida em que Deus doa o ser finito às essências criadas.  • Aqui está a raiz da analogia entis : há continuidade (participação) e descontinuidade (infinitude divina versus finitude criada). ⸻ 2. Essência ( esse ut participabile ) É o ser enquanto participável, receptivo, em potência. Em si não é atual, mas uma capacidade de atuali...

Metafísica hoje? Saturnino Muratore SJ

  Saturnino Muratore SJ Resumo  — “Senso e limiti di un pensare metafisico nell’attuale contesto culturale. In dialogo con Saturnino Muratore S.J.” (Entrevista de Antonio Trupiano). Publicado em: TURPIANO, Antonio (ed.). Metafisica come orizzonte : In dialogo con Saturnino Muratore SJ . Trapani: Pozzo di Giacobbe, 2014.  Formato e objetivo. A entrevista foi organizada em dez questões estratégicas para apresentar o percurso intelectual de Saturnino Muratore (SJ) e, ao mesmo tempo, discutir o papel formativo da metafísica — sobretudo no contexto das faculdades eclesiásticas.   O que é “metafísica” para Muratore. Em vez de uma doutrina estática do “fundamento”, Muratore define metafísica como a capacidade do filósofo de “dizer o todo” — um discurso de totalidade que mantém uma instância crítica constante. Falar do todo implica dialogar com as especializações (que tratam fragmentos) e preservar a crítica para não absolutizar partes.   Relações com Jaspers e Nietzsc...

Se Deus existe, por que o mal?

O artigo ( leia-o aqui ) Si Dieu existe, pourquoi le mal ?,  de Ghislain-Marie Grange, analisa o problema do mal a partir da teologia cristã, com ênfase na abordagem de santo Tomás de Aquino. O autor explora as diversas tentativas de responder à questão do mal, contrastando as explicações filosóficas e teológicas ao longo da história e destacando a visão tomista, que considera o mal uma privação de bem, permitido por Deus dentro da ordem da criação. ⸻ 1. A questão do mal na tradição cristã A presença do mal no mundo é frequentemente usada como argumento contra a existência de um Deus onipotente e benevolente. A tradição cristã tem abordado essa questão de diferentes formas, tentando reconciliar a realidade do mal com a bondade e a onipotência divinas. 1.1. A tentativa de justificar Deus Desde a Escritura, a teologia cristã busca explicar que Deus não é o autor do mal, mas que ele é uma consequência da liberdade das criaturas. No relato da queda do homem (Gn 3), o pecado de Adão e E...