Padre Vaz, em sua “rememoração” do pensamento de Santo Tomás, acolhe os grandes traços da leitura gilsoniana segundo a qual a grande originalidade do Aquinate consiste em ter ultrapassado as perspectivas da metafísica grega e ter fundado, assim, a metafísica do esse. Em seu último livro publicado, Escritos de filosofia VII – Raízes da modernidade, Padre Vaz apresenta o original passo dado por Santo Tomás em meio às disputas de seu tempo no campo da metafísica.
A fisionomia do século XIII é apresentada por Padre Vaz nos capítulos 2,3,4,5 e 6 da referida obra. Destacamos que, na leitura apresentada por Padre Vaz, o século XIII foi um século efervescente, principalmente em sua segunda metade, quando a penetração do corpus aristotélico estará praticamente terminada nas Universidades de Paris e Oxford.[1] Ao introduzir, no universo cultural de então, questões novas, a obra de Aristóteles suscitou reações diversas, gerando uma grande crise no final do século XIII. Não vamos considerar tal crise detidamente em toda sua complexidade. Para o nosso propósito cumpre apenas notar que um dos temas que vem sustentando o universo simbólico ocidental desde seus começos gregos é o da causa essendi, e foi justamente em torno desse tema, no contexto do efervescente século XIII, que Santo Tomás, segundo o Padre Vaz, apresentou sua originalidade.
O tema da causa essendi diz respeito à interrogação que gira em torno da “causa eficiente sobre a origem do ser e a causa formal sobre sua estrutura inteligível ou sua essência”.[2] Trata-se, na verdade, de uma questão que lança raízes, como se disse, nas origens gregas da filosofia, e que exigiu os esforços especulativos de um Platão em seu Sofista ou de um Aristóteles em sua Metafísica. Tal questão gira em torno do uno e do múltiplo, do idêntico e do diferente, do necessário e do contingente, do absoluto e do relativo, ou, em nível epistemológico, refere-se à metafísica e à ontologia.[3]
Três grandes paradigmas sobre a problemática do ser figuravam no século XIII: o substancialismo aristotélico, o emanatismo neoplatônico e o criacionismo bíblico. Segundo Padre Vaz, é ao acolher e articular coerentemente esses três paradigmas vindos da tradição que Santo Tomás apresentará uma nova figura da idéia do Ser.
Nas controvérsias do final do século XIII, duas posições extremas se constituíram em face dos três paradigmas mencionados: 1) O neo-agostinismo, que traduz o criacionismo bíblico nas coordenadas da metafísica neoplatônica, corrigindo-a ou pela afirmação de que a redução ao Uno se dá pela suprassunção dialética da diferença do múltiplo até alcançar a identidade do Princípio criador (paradigma agostiniano) ou pela posição de que a produção do múltiplo é resultado da difusão livre e criadora do Uno-Bem (paradigma dionisiano). O neo-agostinismo mostra que a consistência ontológica imanente do múltiplo depende do Uno real, de modo que as perfeições dos seres finitos participam da perfeição infinita do Uno. 2) O aristotelismo dito heterodoxo, que permanece nos limites da ousiologia (doutrina da substância). A prioridade aqui cabe ao múltiplo, e o uno não é senão uma noção analógica que encontra seu “primeiro analogado”, para falar como os escolásticos, na substância vista como modo fundamental de realização do ser. Num mundo constituído de substâncias, em que não há participação real entre os seres de modo a poder afirmar a reductio in Unum, fica patente o relativismo de que padece a ontologia aristotélica.
Padre Vaz sustenta que a originalidade da metafísica de Santo Tomás emerge a partir da suprassunção que ele opera em relação a essas duas posições extremas: “[...] o alcance e a profundidade da inovação tomásica na resposta ao problema da causa essendi formulado no terreno matricial da oposição do uno e do múltiplo só são adequadamente compreendidos se os pensarmos como elevação dialética (ou ‘suprassunção’) dos dois extremos [...]”.[4]
A operação levada a cabo por Santo Tomás é “de grande complexidade, rigor e amplitude”.[5] Padre Vaz faz questão de exorcizar qualquer imagem doutrinal do Santo Doutor que implique ecletismo ou justaposição de teses incompatíveis. O Aquinate, ao integrar numa síntese coerente, a transcendência do Princípio, visualizado como Esse (identidade da essência e da existência, pois que a essência do Princípio é existir), e a imanência do múltiplo, cuja consistência ontológica reside em ter recebido o esse de acordo com o contorno de sua essência (dialética da distinção real da essência e da existência no ser finito), ultrapassa as duas posições extremas e atinge “o último e mais audaz passo da inteligência metafísica (noûs) na sua inquisição do ser.[6]
Tal passo, Santo Tomás pôde dá-lo em virtude de sua concepção intensiva de ser. O ser entendido como ato de existir, perfeição de todas as perfeições e ato de todos os atos. Com efeito, o Aquinate, observa Padre Vaz, eleva as duas alternativas apresentadas (neo-agostinismo e aristotelismo heterodoxo) ao plano da inteligibilidade radical do ser, e, assim, a problemática da causa essendi e o dilema do uno e do múltiplo é situado no nível metafísico mais profundo – o nível radicalíssimo de inteligibilidade.
Com relação ao problema da constituição do múltiplo, todo extrinsecismo é rejeitado. Sendo o ato de existir o que há de mais íntimo, nada lhe pode ser estranho, a não ser o nada, e, assim, a questão da origem do ser se coloca no nível mais alto de inteligibilidade. Com efeito, a doutrina medieval da matéria primeira como princípio de limitação e finitude dos entes criados corria o grande risco de elaborar um entendimento do finito em que o esse não fosse visto como o primeiro inteligível. A metafísica tomásica do esse bane de vez qualquer extrinsecismo ao colocar “o Primeiro Princípio criador como o Existir absoluto (Ipsum Esse Subsistens), de cuja ação criadora procedem os existentes finitos (ou entes) cujo existir (esse) é realmente o termo real da criação”.[7]
Contribuíram para a elaboração da original metafísica tomásica do esse, esclarece Padre Vaz, a tradição bíblico-patrística, que apresenta, na versão latina do livro do Êxodo (3,14), a autonomeação de Deus a Moisés como sendo aquele que é (Eu sou Aquele que é) e a tradição neoplatônica do existir (einai).[8]
[1] Cf. LIMA VAZ, Henrique C. Escritos de filosofia VII. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 43. (Obra citada de agora em diante como EF VII).
[2] EF VII, 81.
[3] O termo metafísica é aqui empregado no sentido da ciência que atinge o Princípio dos seres finitos como causa do ser finito, de onde parte a inquisição humana. Ontologia seria a ciência que trata da estrutura inteligível do ser finito.
[4] EF VII, 86.
[5] EF VII, 87.
[6] EF VII, 88.
[7] EF VII, 89.
[8] Cf. EF VII, 88.
Esse é um grande livro infelizmente desprezado pela academia e por intelectuais que ignoram a grande contribuição do Padre Vaz como pensador Católico, como filósofo e não mero comentador.
ResponderExcluirPrezado Hilton,
ResponderExcluirConcordo com você. O pensamento de Padre Vaz deveria ser mais explorado. Eu o considero profundo e original, não se enquadrando numa simples repetição do passado.