Pular para o conteúdo principal

"Caritas in veritate": dedo na chaga da civilização

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

A encíclica social de S. S. o Papa Bento XVI, intitulada Caritas in veritate (29-6-2009), põe o dedo na chaga da civilização atual. Com efeito, a civilização ocidental é a primeira civilização da história a alcançar, de alguma maneira, um desdobramento universal. A sua grande invenção, que lhe proporcionou tal façanha, é a ciência e sua aplicação prática, a técnica. A economia globalizada é também, de certa maneira, o resultado da racionalidade científico-técnica ocidental, que planeja, faz cálculos, sopesa os lucros e os prejuízos, liga meios a fins, etc.

No entanto, se, de um lado, a economia é globalizada e o domínio científico-técnico tem alcançado o mundo inteiro e, assim, levado o mundo ocidental a penetrar o globo terrestre, há, de outro lado, um notório déficit ético, pois que à ética não é dada a mesma capacidade de universalização. Ora, se crescem as possibilidades do fazer, deveriam acompanhá-las o discernimento do que se deve fazer. As capacidades técnico-científicas são enormes; mas será que tudo o que é tecnicamente possível é igualmente desejável. Claro que não. Uma economia baseada somente na técnica e no jogo de uma racionalidade meramente instrumental não leva em conta a dignidade da pessoa, a singularidade das situações ou o bem comum.

Mas por que estamos impossibilitados de fazer crescer o domínio ético de acordo com o crescimento das possibilidades técnicas? Eis a grande questão que Bento XVI enfrenta com a maestria de um pensador profundo e de um grande “padre da Igreja” do século XXI.

A Caritas in veritate insiste em que a Verdade é algo que nos transcende, nos envolve e nos precede. Isso equivale a dizer que ela não é, sem mais, construída por nós. Ao longo do texto papal somos convidados a reconhecer que há um Sentido que nos aglutina a todos. Da capacidade de reconhecê-lo depende a efetivação da comunhão entre nós. O mútuo reconhecimento, a gratuidade e a generosidade têm suas raízes lançadas na Verdade, que é também Amor.

A civilização ocidental, infelizmente, tem feito da verdade uma construção humana. O homem, ser finito e precário, tem sido proclamado, pelos corifeus da filosofia moderna, a medida e o fundamento de todas as coisas. Ora, se o homem é a medida, como pode haver autêntico reconhecimento mútuo, autêntica busca do bem comum? O grande Platão já via, na Antiguidade, o perigo de tal antropocentrismo para a vida da pólis e para o amor à justiça. Com justa causa, o filósofo, discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, consagrou toda a sua vida, para o bem da política inclusive, à defesa de que Deus, não o homem, é a medida e o fundamento. O fato é que, sem uma medida Transcendente que as oriente, as decisões humanas e a conduta da vida social tornam-se arbitrárias, egoístas e meramente pragmáticas.

A encíclica do Santo Padre é um convite a que, no exercício de nosso pensamento e da nossa liberdade, reconheçamos em conjunto, como sociedade, o Sentido ou a Verdade que nos abarca e envolve, e que é capaz de oferecer as orientações básicas para o nosso agir em comum. Sem isso, não podemos esperar autêntico humanismo. “A verdade vos libertará” (Jo 8,32).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir