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"Vivo eu, não eu, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20)

A Quaresma nos põe mais uma vez ante os olhos as tristes cenas da Paixão de Cristo. Conhecemo-las bem, mas fica-nos talvez a pergunta: por que tanto sofrimento? Em resposta diremos que a Paixão do Senhor Jesus foi não apenas um testemunho de coragem heróica, mas sim uma fonte de vida para nós, frágeis criaturas. Com efeito; Jesus não teria sofrido se não o fizesse por nós ou para santificar e transfigurar a nossa própria vida com seus sofrimentos de cada dia. O elo entre a Paixão de Cristo e nós são os sacramentos do Batismo e da Eucaristia. Aquele nos faz morrer e ressuscitar com Cristo (cf. Rm 6,2-11) e este alimenta a vida nova recebida no Batismo a tal ponto que São Paulo podia dizer: "Todos vós que fostes batizados, revestistes o Cristo" (cf. Gl 3,27) e "Vivo eu, não eu, mas é o Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). A comunhão de vida com Cristo é bem expressa pelas imagens da Cabeça, Corpo e da Videira-ramos (1Cor 12,14-27 e Jo 15,1-5). Tenha a palavra o Abade P. Bendikt Baur para explicitar o que isto significa:

A vida da Videira, Cristo e a vida dos ramos, os cristãos, são uma só vida. São uma só vida, um só sofrimento, um só esforço e luta, um amor idêntico ao que Cristo tem pelo Pai; a oração, o sofrimento e o amor do Senhor assume a nossa paupérrima oração, o nosso sofrimento e o nosso amor. É isto que nos dá coragem e é nisto que nos confiamos. Na pobreza e no nada da nossa vida, nas nossas orações e sacrifícios, ele, o Senhor transfigurado, oferece-nos o valor e a força de suas orações, o seu amor pelo Pai. É tudo isto que queremos significar quando dizemos: ‘Ele está em nós e nós nele.Vivo eu, oro, mas na verdade não eu, é Ele que vive e ora em mim. Ele vive a minha vida, Ele carrega a minha vida, Ele toma e invade a minha vida com o valor e a força da sua própria vida’ (A Vida Espiritual, p. 161)..

Verdade é que estas proposições são sustentadas tão somente pela fé. A fé, porém, desembocará na visão face-a-face. Entrementes, "nossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, nossa vida, aparecer, também nós apareceremos com Ele na glória" (Cl 3,3s).

Eis algumas reflexões que se enquadram bem no conceito de Quaresma - Páscoa. Preparemo-nos para a grande solenidade da Ressurreição do Senhor!

Pe. Estêvão Bettencourt, OSB

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