Pular para o conteúdo principal

O triunfo final e glorioso da Beleza

Em Jesus Cristo, o Último já se manifestou no mundo. O aparecimento de Jesus imprime à história sua orientação decisiva. O anúncio do Evangelho, os milagres, o Mistério Pascal, mormente a ressurreição, são os sinais certíssimos de que Deus age no mundo de uma maneira nova em vista da consumação perfeita de seu plano. O tempo da Igreja já são tempos escatológicos, embora ainda não se tenham manifestado plenamente os novos céus e nova terra[1] de que fala a Escritura. Com efeito, esperamos ainda a manifestação gloriosa do Senhor a fim de transfigurar, de maneira nova e inusitada, este mundo na e pela Beleza divina.

A irrupção de Cristo, o Último, na história leva-nos naturalmente a perguntar pelas últimas coisas que nos aguardam, seja no fim da vida terrestre do homem (escatologia individual), seja no fim da história (escatologia coletiva, final ou cósmica). Ressalte-se que a esperança cristã na manifestação das últimas coisas está ancorada no poder de Deus, de modo que não é esperança em forças intramundanas, em um mundo em evolução retilínea e necessária rumo ao melhor. Deus, em sua sabedoria e liberdade, há de levar o mundo ao fim para o qual o criou no devido tempo, só dele conhecido. Deve-se ainda ter presente que não podemos pretender uma descrição do mundo futuro. A fé nos dá apenas certezas básicas. O que Deus preparou para os que o amam supera todo entendimento[2], e, como tal, deve ser tratado com sobriedade nesta vida:

A esperança escatológica constitui uma dimensão da vida/experiência cristã. Nossa união completa e feliz com Deus em Cristo será revelada no final dos tempos; trata-se de algo que ainda não podemos apreender plenamente. Não deveríamos confundir os deleites que às vezes sentimos em nossa fé com a satisfação final a nós reservada. A imprevisibilidade de nossa experiência mostra-se um corretivo útil; pois, neste mundo, jamais podemos sentir ou ver mais que uma imagem da plenitude oculta da vida que temos em Cristo.[3]


A escatologia cristã, desse modo, integra essencialmente o Evangelho: "é uma mensagem de salvação. Anuncia-nos a realização plena da salvação acontecida em Jesus. Se todo evento-Cristo é salvífico, não pode deixar de sê-lo também sua manifestação definitiva"[4]. A escatologia é o termo para o qual tende o plano de Deus, termo esse em que o Homem poderá saciar-se plena e sobrenaturalmente da Beleza eterna, que outra coisa não é senão a Felicidade em si.

De acordo com a fé da Igreja, podemos distinguir uma escatologia individual, uma escatologia coletiva ou final e uma escatologia intermediária[5]. A escatologia individual trata do que se dá com o homem quando termina sua vida neste mundo. Com a morte do homem, dá-se o início da escatologia individual. "A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência, depois da morte, do elemento espiritual, dotado de consciência e de vontade, de tal modo que subsista o 'eu humano', ainda que temporariamente privado do complemento do próprio corpo"[6]. Esse elemento, a Tradição da Igreja o designa por alma. Bento XII, com a Constituição Benedictus Deus de 1336[7], declarou que, imediatamente depois da morte, os justos, se não necessitarem da purificação do purgatório, gozam da visão face-a-face, mesmo carecendo do complemento do corpo ressuscitado.
.
A fé da Igreja, não obstante, sustenta com vigor a ressurreição da carne: "...o estado de sobrevivência da alma depois da morte não é definitivo nem ontologicamente mais alto, mas 'intermédio' e transitório, e ordenado, em último termo, para a ressurreição"[8]. A ressurreição da carne é uma doutrina especificamente cristã e porta em si um selo contra todo dualismo que considera a matéria como algo mau em si ou como não passível de salvação. A matéria faz parte da nossa história e, como tal, será também glorificada. Ademais, a doutrina da ressurreição afirma muito claramente a seriedade das realidades terrestres, uma vez que o corpo com o qual caminhamos verá a glória e os atos deliberados desta vida ecoarão na eternidade. Isso nos leva a empenhar nossa liberdade, desde já, cooperando com a graça, para que o Reino se manifeste o mais possível neste mundo, até que atinja sua plenitude no outro.

O purgatório, outra realidade afirmada pela fé da Igreja, é o estado provisório daqueles que partiram desta vida fudamentalmente orientados para Deus, mas com resquícios ainda do homem velho. Neste estado, a alma se purifica no amor de Deus, para se conformar plenamente a Cristo e abrir-se sem empecilho algum à Beleza infinita de Deus.

Essas afirmações nos levam a dizer que há um estado intermediário entre a escatologia individual, que começa logo após a morte, e a coletiva, que se dará por ocasião da consumação final do plano de Deus, ocasião em que a matéria também, juntamente com todo o cosmo, participará, de modo novo e inusitado, da Glória e Beleza divinas, e cada alma será dotada do complemento de seu corpo transfigurado, à semelhança do corpo glorioso de Jesus ressuscitado.

A fé da Igreja afirma ainda a real possibilidade da frustração definitiva da liberdade humana. Se se quer levar a sério a liberdade humana, deve-se dizer que ela pode ser capaz de recusar a participação na vida divina oferecida por Deus. A liberdade que recusa Deus, perde-o, e tal perda, que é a perda do único Bem e Beleza que não deveríamos perder, constitui a essência daquilo que chamamos de inferno. O inferno, pois, deve-se à liberdade que se recusa participar da vida de Deus em Cristo. É a fealdade por excelência, pois consiste na negação do que o homem, por graça de Deus, deveria ser; negação da sua perfeita e sobrenatural realização.

Enfim, a mensagem da escatologia cristã dá ao coração humano uma perspectiva fundamentalmente otimista, pois nos dá a conhecer que não estamos sozinhos em busca da beleza. A Beleza em si, Deus, existe e é, não só o termo para o qual caminhamos, mas o principal promotor e garante de nosso sucesso no percurso, pois que, com amor, firmeza e suavidade, nos conduz para a sua própria vida, que outra coisa não é senão o dinamismo eterno da Beleza que se deleita consigo mesma e que nos chama a, dessa deleitação, sermos partícipes. A vitória é da Beleza e dos que a ela aderem.
.
Padre Elílio de Faria Matos Júnior
Arquidiocese de Juiz de Fora

[1] Cf. 2Pd 3,13.
[2] Cf. 1Cor 2,9.
[3] Navone, John, Teologia da Beleza. São Paulo: Paulus, p. 91.
[4] Escatologia. In: Latourelle, René; Fisichella, Rino (dirs.). Dicionário: teologia fundamental. Petrópolis: Vozes, p. 260.
[5] Cf. Justo Collantes. A Fé Católica. Rio de Janeiro: Lumen Christi, c. X, p. 1166.
[6] Ibidem, n. 0.066.
[7] Cf. Ibidem, n. 0.016ss.
[8] Comissão Internacional de Teologia. Esperança cristã na ressurreição. Algumas questões atuais de escatologia. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 35.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Metafísica essencial

Cornelio Fabro foi quem realçou a centralidade do ser como ato intensivo na metafísica de S. Tomás  Metafísica essencial:  1. Ipsum Esse É a perfeição máxima formal e real. Ato puro. Intensidade máxima. É participável pelas criaturas através de essências limitadas e da doação de ser como ato a tais essências.  • O ipsum Esse subsistens é a plenitude formal e atual do ser. Não é apenas a perfeição máxima “formal” no sentido lógico, mas o ato mesmo da atualidade infinita.  • Fabro enfatiza que o Esse divino é incomunicável em si mesmo (ninguém nem nada pode possuir ou receber a infinitude divina), mas é participável secundum quid , na medida em que Deus doa o ser finito às essências criadas.  • Aqui está a raiz da analogia entis : há continuidade (participação) e descontinuidade (infinitude divina versus finitude criada). ⸻ 2. Essência ( esse ut participabile ) É o ser enquanto participável, receptivo, em potência. Em si não é atual, mas uma capacidade de atuali...

Metafísica hoje? Saturnino Muratore SJ

  Saturnino Muratore SJ Resumo  — “Senso e limiti di un pensare metafisico nell’attuale contesto culturale. In dialogo con Saturnino Muratore S.J.” (Entrevista de Antonio Trupiano). Publicado em: TURPIANO, Antonio (ed.). Metafisica come orizzonte : In dialogo con Saturnino Muratore SJ . Trapani: Pozzo di Giacobbe, 2014.  Formato e objetivo. A entrevista foi organizada em dez questões estratégicas para apresentar o percurso intelectual de Saturnino Muratore (SJ) e, ao mesmo tempo, discutir o papel formativo da metafísica — sobretudo no contexto das faculdades eclesiásticas.   O que é “metafísica” para Muratore. Em vez de uma doutrina estática do “fundamento”, Muratore define metafísica como a capacidade do filósofo de “dizer o todo” — um discurso de totalidade que mantém uma instância crítica constante. Falar do todo implica dialogar com as especializações (que tratam fragmentos) e preservar a crítica para não absolutizar partes.   Relações com Jaspers e Nietzsc...

Se Deus existe, por que o mal?

O artigo ( leia-o aqui ) Si Dieu existe, pourquoi le mal ?,  de Ghislain-Marie Grange, analisa o problema do mal a partir da teologia cristã, com ênfase na abordagem de santo Tomás de Aquino. O autor explora as diversas tentativas de responder à questão do mal, contrastando as explicações filosóficas e teológicas ao longo da história e destacando a visão tomista, que considera o mal uma privação de bem, permitido por Deus dentro da ordem da criação. ⸻ 1. A questão do mal na tradição cristã A presença do mal no mundo é frequentemente usada como argumento contra a existência de um Deus onipotente e benevolente. A tradição cristã tem abordado essa questão de diferentes formas, tentando reconciliar a realidade do mal com a bondade e a onipotência divinas. 1.1. A tentativa de justificar Deus Desde a Escritura, a teologia cristã busca explicar que Deus não é o autor do mal, mas que ele é uma consequência da liberdade das criaturas. No relato da queda do homem (Gn 3), o pecado de Adão e E...