Pular para o conteúdo principal

A metafísica: do ser do ente ao Ser subsistente

S. Tomás é o grande descobridor da compreensão do ser como ato intensivo


1 A metafísica como ciência do ente e do ser que o constitui

A metafísica, segundo a tradição inaugurada por Aristóteles e elevada à perfeição por Santo Tomás de Aquino, é a ciência que considera o ente enquanto ente e os atributos que lhe pertencem enquanto tal (ens inquantum ens). Ela não estuda este ou aquele ente particular, como fazem as ciências empíricas ou matemáticas, mas investiga o que é próprio do ente em sua universalidade transcendental.

“Objectum huius scientiae est ens, non secundum quod est hoc vel illud, sed secundum communem rationem entis” — In Metaphysicam, lib. 4, lect. 1, n. 540 

Entende-se por ente (ens) tudo aquilo que é ou está sendo. No entanto, o que faz com que um ente seja de fato, o que dá existência real ao ente, é o ser (esse), o ato próprio e último que atualiza a essência e a torna existente. Nesse sentido, o ser ou o ato de ser (actus essendi) é o ato do ente.

“Esse est actualitas omnium actuum, et propter hoc est actualitas formae” — De Potentia, q. 7, a. 2, ad 9

Assim, embora a metafísica tenha por objeto formal o ens inquantum ens, sua investigação mais profunda atinge aquilo que faz o ente ser, ou seja, o seu ato fundamental que o constitui como atual, existente.

2 O ser como participação e a questão de sua causa

A observação metafísica constata que os entes do mundo — desde a pedra até o espírito humano — não são ser por essência, mas têm ser por participação. São compostos de essência e ato de ser (esse), e, portanto, seu esse não lhes pertence necessariamente, mas é recebido. Todo ente criado ou finito é, nesse sentido, uma essência que participa do ser, e essa participação exige uma explicação.

“Omne autem quod est per participationem, reducitur sicut ad primam causam ad id quod est per essentiam” — De ente et essentia, cap. 4

Essa estrutura participada revela que o ser do ente não se explica por si mesmo. É contingente, finito, limitado. A inteligência metafísica, ao captar esse dado, se vê obrigada a buscar a causa do ser dos entes. Não a causa eficiente de um ente em particular, mas a causa transcendente do próprio ser enquanto tal presente no ente finito e composto — a causa do esse commune.

3 Deus como Ser por essência — o Ipsum Esse Subsistens

Ao buscar a razão última do ser dos entes, a metafísica descobre que esse ser participado aponta necessariamente para um Ser que seja por essência, ou seja, uma realidade na qual não haja distinção entre essência e ato de ser, mas cuja essência seja o próprio ser: Ipsum Esse Subsistens.

“Ostenditur igitur ex praemissis, quod nec in Deo sit aliud esse et quidditas, sed ipsum esse sit eius quidditas” — Summa Theologiae, I, q. 3, a. 4

Esse Ser necessário, subsistente, eterno, simples, causa de todo ser, é a realidade que os filósofos reconhecem como Deus, embora a metafísica não o tome imediatamente como objeto formal. Deus não é o objeto direto da metafísica (como é o da teologia sagrada), mas a conclusão última a que a inteligência metafísica se vê levada ao considerar o ser dos entes.

“Non Deus ut Deus, sed ens commune, est obiectum metaphysicae” — Caetano, In Iam partem Summae Theologiae, q. 1, a. 7

A metafísica parte do ens commune, mas é conduzida ao reconhecimento do Ser necessário por essência. Assim, a consideração do ser do ente (esse commune) leva necessariamente à postulação do Esse per essentiam.

4 Conclusão: a metafísica culmina no Ser Subsistente

A metafísica, por ser ciência do ente enquanto ente, reconhece que todo ente é constituído por seu ato de ser — e que esse ato, no ente, é participado, recebido, limitado. O reconhecimento da contingência do ser dos entes impele a razão a buscar sua causa última, e esta só pode ser o Ser por si, o Ipsum Esse Subsistens, que é, em linguagem teológica, Deus.

“Solus Deus est suum esse” — Summa Theologiae, I, q. 3, a. 4

Neste sentido, a metafísica não tem Deus como seu objeto formal, mas tende a Ele como coroamento de sua investigação, como Causa do ser, como fundamento último da realidade.

“Deus é o fim natural da inteligência metafísica; e ela não pode repousar enquanto não alcançar a Causa primeira do ser que experimenta” — Jacques Maritain, Les degrée du savoir, cap. V.

Com isso, pode-se afirmar que a metafísica não é apenas especulação abstrata, mas ascese da inteligência rumo ao princípio supremo, como diz Cornelio Fabro:

“A metafísica tomista é o caminho da razão que, partindo da participação finita no ser, ascende ao Ser subsistente, fundamento absoluto de toda realidade” — La nozione metafisica di partecipazione, cap. VIII
Ver insights e anúncios
Todas as reações:
Maria Aparecida, Rosiclair Matos e 1 outra pessoa

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Habermas e Ratzinger. Um diálogo imprescindível

O livro Dialéctica de la secularización. Sobre la razón y la religión , fruto do diálogo entre Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas, representa um marco no esforço de aproximar fé e razão em um mundo secularizado. Trata-se de um encontro singular, pois reúne dois pensadores que muitos consideravam intelectualmente opostos: de um lado, o teólogo então cardeal Ratzinger, defensor da centralidade da fé cristã; de outro, Habermas, expoente do pensamento laico iluminista. O tema discutido — se o Estado liberal e secularizado pode sustentar-se sem fundamentos éticos prévios — toca o coração das tensões atuais entre democracia, religião e racionalidade moderna. Habermas sustenta que o Estado democrático pode fundamentar-se a partir de uma razão autônoma e pós-metafísica, sem necessidade de recorrer diretamente às tradições religiosas. Contudo, ele reconhece que a democracia enfrenta um déficit motivacional: para existir, não basta que as normas sejam juridicamente válidas, é preciso que os cida...

Revelação histórica como captação do que Deus está sempre dizendo a todos. Uma palavra sobre a teologia de Queiruga

O teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga propõe um entendimento peculiar da revelação divina, que, na sua visão, procura estar em consonância com o estágio atual dos saberes acumulados pela humanidade. Esse entendimento está, evidentemente, sujeito a críticas, principalmente por ser um entendimento novo sob muitos aspectos.  Segundo Queiruga, Deus está se doando e se comunicando totalmente desde o princípio da criação. Acontece que a criatura é finita, e só pode receber de acordo com sua capacidade. O Inteiro de Deus é recebido aos poucos, mas o processo de recepção pode crescer rumo à plenitude.  Assim, todos os povos são objeto da autocomunicação divina, mas o modo de recepção varia de uns para outros. Certamente influencia na capacidade de receber a boa vontade ou a abertura do coração, mas também as contingências e vicissitudes dos povos e indivíduos. A geografia, os acontecimentos históricos, a constituição biofísica e outros mil tipos de contingências… tudo isso entra n...

Marxismo cultural? O problema é muito mais profundo

A questão mais candente dos nossos tempos em face da fé cristã não é o “marxismo cultural”, esse espantalho que nem existe como é propalado, nem o campo de atenção mais originário é o político ou social. O grande problema é aquele anunciado por Nietzsche há mais de um século, ele mesmo defensor do niilismo (e, por sinal, profundo anti-socialista e, por, conseguinte, anti-marxista): a mudança radical do espírito e a introdução de uma nova época em que “os valores supremos perdem o valor; falta a finalidade; falta a resposta ao ‘por quê?’”. Essa nova época tem raízes longínquas, mas Nietzsche é quem tem plena consciência de seu desabrochar no ocaso da modernidade.  Depois de Hegel, a filosofia (as suas correntes majoritárias) caiu no domínio irrestrito do devir. O marxismo, como hegelianismo invertido, ainda procura estabelecer como fundamento uma estrutura estável: a lei do desenvolvimento histórico. Mas em geral, depois de Hegel, qualquer estrutura, por mínima que seja, tende a ser...