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Confissões de um metafísico em tempos de niilismo

Não comecei pela dúvida, mas pela admiração. Não fui lançado à existência como quem acorda em um mundo estranho, mas como quem, ainda sem saber nomear, intui que há algo — e que esse algo brilha. Comecei pela confiança de que o ser tem sentido. E o primeiro a me dar palavras para esse pressentimento foi um frade medieval, Tomás, cuja inteligência parecia ajoelhar-se diante do real.

A princípio, maravilhou-me a harmonia entre fé e razão: Deus não era o adversário do pensamento, mas sua origem e fim. Na Suma Teológica, encontrei não apenas respostas, mas um método de humildade intelectual, onde pensar é um ato de justiça ao ser. A filosofia, assim, se tornava oração: buscar o sentido do ente como quem busca o rosto do Pai.

Mas à medida que crescia em mim a luz da metafísica do esse, aumentava também a consciência das sombras que a modernidade lançou sobre o ser. O mundo que me cercava — um mundo de técnica, de cálculo, de vontades cegas — parecia ter perdido a capacidade de se perguntar pelo fundamento. O ser se eclipsava sob o peso do conceito, da função, da eficiência.

Foi então que encontrei Cornelio Fabro, Gilson, Maritain — aqueles que, no século XX, acenderam novamente a lâmpada da ontologia. Com eles, compreendi que o ser não é conceito, mas chama. Que o ser do ente é recebido, participado, intensamente dependente. E que a criação não é um ato passado, mas o dom contínuo do Ser absoluto a tudo quanto existe.

Mas se tudo participa do Ser, se tudo recebe — então nada pode fundar-se a si mesmo. E se não pode haver uma cadeia infinita de entes finitos, há que haver um Ato puro, um Ser em que não há mistura, nem potência, nem sombra. Deus. Não como objeto entre outros, mas como fundamento silencioso, presente em tudo, e transcendente a tudo.

Contudo, nem todo caminho era luz. E eis que me defrontei com o mais radical dos pensadores italianos: Emanuele Severino. Sua tese de que o devir é impossível, e todo ente é eterno soou como heresia — e talvez o seja. Mas como ignorar sua crítica contundente à metafísica da “práxis”, ao esquecimento da eternidade, à pretensão de fazer do nada um interlocutor do ser?

Comecei a escutá-lo. E mais: a acolher o desafio. Seria possível escutar a provocação severiniana sem trair a fé? Teria a teologia compreendido plenamente o que significa “criar do nada”? E se, na eternidade divina, tudo já estivesse presente desde sempre — não como necessidade, mas como dom pensado e querido?

Assim, a filosofia tornou-se para mim uma travessia entre tradições: não apenas fidelidade a Tomás, mas escuta crítica de tudo o que o tempo nos apresenta. A ontologia — o pensamento do ser — passou a ser também uma antropologia radical. Pois se participo do ser, então participo de Deus. E a religião não é um código de moralidade, mas a via de retorno à fonte.

Não busco uma vida melhor. Busco a vida verdadeira.

Deus não é “alguém” diante de mim, mas a consciência que funda minha própria consciência. Posso falar com Ele como a um Tu, mas sei que Ele está além de todo tu e eu. Ele é o Ser, e eu sou um ente — mas um ente amado, chamado a existir, sustentado por um sopro eterno.

Hoje, contemplo a realidade não como um problema, mas como um mistério. O ser me atrai como luz — e pensar é, para mim, mergulhar nessa luz até onde ela me permitir. A filosofia é, assim, uma forma de amor. Um amor intelectual, que toca o eterno nas coisas mais simples.

Talvez seja este o meu ofício: testemunhar que o ser ainda brilha. Que a verdade ainda é possível. Que, mesmo em tempos de niilismo, ainda há aqueles que se ajoelham diante do ser — não por fraqueza, mas por gratidão.

E isso é tudo.

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