Pular para o conteúdo principal

Revelação e Tradição: ensaios de Rahner e Ratzinger

O livro Revelación y Tradición reúne dois ensaios teológicos de Karl Rahner e Joseph Ratzinger, abordando a relação entre revelação divina e tradição na fé cristã. O objetivo principal dos autores é esclarecer como a revelação se manifesta na história e como é transmitida através da Igreja.

I. “Observaciones sobre el concepto de revelación” – Karl Rahner

Rahner inicia seu ensaio destacando a complexidade do conceito de revelação. Ele argumenta que a revelação não deve ser entendida apenas como um conjunto de verdades transmitidas por Deus à humanidade, mas como um evento dinâmico que envolve a totalidade da existência humana. Essa abordagem busca superar visões reducionistas que tratam a revelação como algo puramente extrínseco (um depósito de verdades) ou como um fenômeno meramente interior (uma experiência subjetiva).

1. Crítica à visão extrínseca e imandntista da revelação

No passado, a teologia católica tendia a tratar a revelação de forma extrínseca, como um conjunto de proposições doutrinárias comunicadas por Deus e preservadas pela Igreja.

O modernismo, por outro lado, tentou reinterpretar a revelação como um desenvolvimento interior da consciência religiosa da humanidade.

Rahner busca um caminho intermediário, argumentando que a revelação é, ao mesmo tempo, um evento divino e histórico, que exige uma resposta humana para se concretizar plenamente.

2. Revelação como um processo histórico e transcendental

A revelação se dá na história, mas não pode ser reduzida a eventos históricos isolados. Ela é, antes, a ação contínua de Deus que se comunica e se doa à humanidade.

A Escritura testemunha a revelação, mas não a esgota; a revelação se manifesta também na fé da comunidade eclesial e na tradição viva da Igreja.

A relação entre revelação e fé é essencial: sem fé, a revelação não pode ser plenamente acolhida. A fé é o meio pelo qual a revelação se torna uma realidade vivida.

3. Revelação e História da Salvação

A revelação cristã tem um caráter único porque Deus se revelou de maneira definitiva em Jesus Cristo.

Esse evento central da revelação exige uma transmissão fiel ao longo do tempo, o que leva à necessidade da tradição.

Rahner conclui que a revelação não pode ser simplesmente identificada com a Escritura ou com um conjunto de doutrinas. Ela é um evento dinâmico no qual Deus se comunica pessoalmente à humanidade e é experimentado na fé e na vida da Igreja.

II. “Ensayo sobre el concepto de tradición” – Joseph Ratzinger

O ensaio de Ratzinger analisa a tradição como o meio pelo qual a revelação é preservada e transmitida na Igreja. Ele começa destacando a controvérsia em torno da tradição na Reforma Protestante e no Concílio de Trento, e depois apresenta uma reflexão teológica sobre seu verdadeiro significado.

1. O debate sobre Tradição e Escritura na Reforma Protestante

Lutero rejeitou a tradição como fonte autônoma da revelação, alegando que apenas a Escritura (sola scriptura) deveria ser aceita como normativa.

Para Lutero, a tradição eclesial se tornou um fardo desnecessário, obscurecendo a pureza do Evangelho e impondo regras humanas que afastavam a verdadeira fé.

O Concílio de Trento respondeu reafirmando que a revelação está contida tanto na Escritura quanto na Tradição (in libris scriptis et sine scripto traditionibus).

2. O conceito de tradição na teologia católica

A tradição não é apenas um conjunto de costumes ou práticas litúrgicas, mas a transmissão viva da fé apostólica.

A Escritura e a Tradição não são concorrentes, mas complementares: a Escritura é uma expressão fundamental da tradição, mas não sua única forma.

A fé cristã é baseada não apenas em um texto, mas em um evento: a revelação de Deus em Cristo. Esse evento é continuamente atualizado na Igreja através da Tradição.

3. Revelação, Escritura e Tradição

A revelação é mais ampla que a Escritura. A Bíblia é um testemunho escrito da revelação, mas a revelação propriamente dita é Jesus Cristo.

A Tradição é o meio pelo qual a presença de Cristo continua a ser experimentada na Igreja, garantindo a transmissão fiel do Evangelho.

O Espírito Santo guia a Igreja para preservar a integridade da revelação ao longo da história.

4. A função da Tradição na Igreja

A Tradição tem três níveis principais:

1. Tradição fundamental: a presença contínua de Cristo na Igreja, que sustenta a fé cristã.

2. Tradição apostólica: a transmissão dos ensinamentos dos apóstolos, expressos na Escritura e na pregação da Igreja.

3. Tradição eclesial: o desenvolvimento doutrinário e litúrgico ao longo do tempo, sempre em continuidade com a revelação original.

5. Escritura e Tradição na história da Igreja

No Novo Testamento, os primeiros cristãos viam a Escritura (Antigo Testamento) como um testemunho da revelação, mas a interpretavam à luz de Cristo.

A Igreja primitiva não separava Escritura e Tradição, pois ambas eram vistas como parte de um único processo de transmissão da fé.

A Tradição foi essencial para a definição do cânon das Escrituras e para a formulação dos dogmas cristológicos e trinitários.

Ratzinger conclui que a Tradição não pode ser descartada sem comprometer a integridade da fé cristã. Sem a Tradição, a própria Escritura perde seu contexto e sua interpretação autêntica.

Conclusão Geral

Rahner e Ratzinger concordam que a revelação não pode ser reduzida à Escritura; ela é uma realidade viva, que envolve a ação de Deus na história e sua comunicação contínua com a humanidade.

A Tradição não é uma mera coleção de ensinamentos humanos, mas a presença viva de Cristo na Igreja, garantindo a fidelidade da transmissão da fé.

A Escritura é fundamental, mas não pode ser entendida corretamente sem a Tradição, que a interpreta e a aplica na vida da Igreja.

O livro é uma reflexão teológica profunda sobre a relação entre revelação, Escritura e Tradição, mostrando como esses elementos se complementam para preservar e transmitir a fé cristã ao longo da história.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Primeira Via de Sato Tomás

A primeira via de São Tomás de Aquino para provar a existência de Deus é a chamada prova do motor imóvel, que parte do movimento observado no mundo para concluir a existência de um Primeiro Motor imóvel, identificado como Deus. Ela é formulada assim: 1. Há movimento no mundo. 2. Tudo o que se move é movido por outro. 3. Não se pode seguir ao infinito na série de motores (causas de movimento). 4. Logo, é necessário chegar a um Primeiro Motor imóvel, que move sem ser movido. 5. Esse Primeiro Motor é o que todos chamam de Deus. Essa prova se fundamenta em princípios metafísicos clássicos, especialmente da tradição aristotélica, como: • A distinção entre ato e potência. • O princípio de que o que está em potência só passa ao ato por algo que já está em ato. • A impossibilidade de regressão ao infinito em causas atuais e simultâneas. Agora, sobre a validade perene dessa via, podemos considerar a questão sob dois ângulos: 1. Validade ontológica e metafísica: sim, perene A estrutura m...

Bíblia: inspiração, pedagogia e revelação

Inspiração bíblica: Deus fala na história e não por ditado Durante muito tempo, imaginou-se a inspiração bíblica segundo um modelo simplificado, quase mecânico: Deus “ditaria” e o ser humano apenas escreveria. Ou, de modo mais sofisticado, Deus inspiraria o autor humano a escolher cada palavra disponível na sua cultura para expressar ideias, que seriam queridas diretamente por Deus, o que chega a quase equivaler a um ditado. Essa compreensão, embora bem-intencionada, não faz justiça nem à riqueza dos textos bíblicos nem ao modo concreto como Deus age na história. Hoje, a teologia bíblica e o Magistério da Igreja ajudam-nos a entender a inspiração não como um ditado celeste, mas como um processo vivo, histórico e espiritual, no qual Deus conduz um povo inteiro e, dentro dele, suscita testemunhas e intérpretes. A Bíblia não caiu do céu pronta. Ela nasceu na vida concreta de um povo que caminhava, sofria, lutava, errava, crescia, esperava e rezava. Por isso, antes de falar de livros inspi...

Criação "ex nihilo"

Padre Elílio de Faria Matos Júnior Em Deus, e somente em Deus, essência e existência identificam-se. Deus é o puro ato de existir ( Ipsum Esse ), sem sombra alguma de potencialidade. Ele é a plenitude do ser. Nele, todas as perfeições que convém ao ser, como a unidade, a verdade, a bondade, a beleza, a inteligência, a vontade, identificam-se com sua essência, de tal modo que podemos dizer: Deus é a Unidade mesma, a Verdade mesma, a Bondade mesma, a Beleza mesma... Tudo isso leva-nos a dizer que, fora de Deus, não há existência necessária. Não podemos dizer que fora de Deus exista um ser tal que sua essência coincida com sua existência, pois, assim, estaríamos afirmando um outro absoluto, o que é logicamente impossível. Pela reflexão, pois, podemos afirmar que em tudo que não é Deus há composição real de essência (o que alguma coisa é) e existência (aquilo pelo qual alguma coisa é). A essência do universo criado não implica sua existência, já que, se assim fosse, o universo, contingen...