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Fundamentação última na filosofia

Meu pensamento sobre a condição de possibilidade da filosofia e da metafísica pode ser explicitado a partir de três pontos fundamentais:

1. A Filosofia como Saber sobre a Verdade

2. A Incontrovertibilidade da Existência da Verdade

3. A Verdade como Horizonte do Espírito


1. A Filosofia como Saber sobre a Verdade

O ponto de partida do raciocínio é a distinção entre filosofia e as ciências particulares. O autor enfatiza que a filosofia não pode dispensar um compromisso explícito com a verdade, ao contrário das ciências, que:

Lidam com muitos detalhes e aspectos fragmentados da realidade.

Não pretendem chegar a grandes verdades sobre o ser e a totalidade do real.

Assumem pressupostos metodológicos sem necessariamente fundamentá-los.

A filosofia, por outro lado, não pode ser dogmática em relação a seus próprios fundamentos. Isso significa que seu primeiro movimento crítico deve ser a busca pela condição de possibilidade do conhecimento verdadeiro, sem assumir como óbvio aquilo que deve ser justificado racionalmente.

No entanto, a filosofia e qualquer ciência pressupõem a intencionalidade da verdade. Isso significa que toda investigação racional parte da busca pelo verdadeiro, ainda que haja distinções: as ciências buscam o verdadeiro dentro de paradigmas assumidos consciente ou inconscientemente, e a filosofia busca o verdadeiro como tal ou absolutamente (ao menos essa é a pretensão). Se essa intencionalidade fosse eliminada, nenhum discurso teria sentido, pois não haveria critério para distinguir entre o verdadeiro e o falso. Assim, a busca da verdade não é opcional, mas constitutiva do ato de conhecer.


2. A Incontrovertibilidade da Existência da Verdade

Dado que a verdade é a condição transcendental do pensamento filosófico e científico, a questão que se impõe é: podemos afirmar criticamente que estamos no horizonte da verdade? Ou seja, há um ponto de partida indubitável que fundamente a busca da verdade?

Eu respondo afirmativamente, valendo-se de um argumento de autocontradição performativa:

Para que uma afirmação seja incontrovertível, ela deve negar sua própria negação.

Isso significa que se tentamos negar essa afirmação, acabamos confirmando-a.

No caso da verdade, quem nega que ela existe já está, de fato, afirmando uma verdade.

Isso porque qualquer enunciado, para ser compreendido, se apresenta implicitamente como verdadeiro.

Se alguém disser “a verdade não existe”, ele já está fazendo uma afirmação que pretende ser verdadeira. Logo, a verdade existe.

Esse argumento segue a lógica retorsiva (ou prova por refutação da negação): a negação da verdade nega a si mesma. Isso significa que a verdade não pode não existir, pois sua inexistência é impossível sem gerar contradição.

Dessa forma, a existência da verdade é uma afirmação autossustentável, pois qualquer tentativa de negá-la leva inevitavelmente à sua reafirmação.

Essa conclusão estabelece um ponto de partida crítico e incontrovertível: estamos no horizonte da verdade.


3. A Verdade como Horizonte do Espírito

A última parte do raciocínio leva à noção de horizonte transcendental da verdade. Aqui, o conceito de “horizonte” deve ser compreendido como a condição fundamental que torna possível qualquer conteúdo verdadeiro específico.

A verdade existe de maneira transcendental, ou seja, independentemente dos conteúdos particulares que possam ser verdadeiros.

O que significa que antes de qualquer verdade específica (como “2 + 2 = 4” ou “o fogo queima”), já estamos na ordem da verdade enquanto tal.

Esse “estar no horizonte da verdade” não é uma verdade específica, mas a condição de possibilidade de toda verdade específica.

Podemos dizer que a verdade não é apenas um conjunto de proposições verdadeiras, mas um horizonte em que a inteligência opera. A inteligência não pode sair desse horizonte sem contradizer-se, pois sua própria estrutura exige relação com o ser e a verdade.

Assim, a consciência desse horizonte é o primeiro passo crítico da filosofia:

Não podemos determinar, desde o início, um conteúdo específico de verdade.

Mas podemos determinar que a verdade como tal existe e que estamos sempre já nela.

Isso dá à filosofia sua fundamentação última, pois significa que a razão não pode ser cética sobre a verdade sem cair em contradição. Mesmo o ceticismo, para ser pensado e argumentado, precisa pressupor a verdade.


Conclusão: O Fundamento da Filosofia

A partir desse raciocínio, eu demonstro que:

1. Toda investigação racional está orientada para a verdade, seja na filosofia ou nas ciências.

2. Negar a existência da verdade é impossível, pois essa negação já a pressupõe.

3. O espírito humano está sempre no horizonte da verdade, pois sua estrutura exige uma relação com o ser e com a inteligibilidade.

Essa análise nos dá um fundamento crítico seguro para a filosofia, permitindo que ela se desenvolva sem assumir dogmaticamente seus princípios, mas reconhecendo um ponto de partida inevitável: a verdade existe e a razão humana está estruturalmente ligada a ela.

Isso também indica que qualquer tentativa de relativismo absoluto ou ceticismo radical é insustentável, pois para negar a verdade já é preciso pressupô-la. Assim, a metafísica e a epistemologia filosófica encontram aqui seu primeiro fundamento: o ser humano é um ser para a verdade, e isso é inegável.

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