A pedido de um amigo, faço algumas considerações histórico-teológicas sobre o Purgatório:
1) Nos inícios do povo de Israel, não havia fé na ressurreição ou na imortalidade da alma. Acreditava-se, como era comum entre muitos povos antigos, que “sombras” do homem restassem no sheol depois da sua morte, isto é, numa região inferior, conforme a cosmologia da época. Aí não se tinha vida consciente, mas uma existência espectral. As “sombras” de quem morria iam juntar-se às dos pais. Daí vem a noção de “mansão dos mortos”.
2) Aos poucos surgiu a fé na ressurreição dos mortos no meio do povo bíblico. Metáforas de Deus agindo em favor da restauração e da revitalização do povo foram relidas na perspectiva de uma ressurreição individual. Afinal, seria ininteligível que os bons e piedosos homens do século II a.C., que morriam nas batalhas resistindo à helenização de Israel sob Antíoco IV Epífanes, desaparecessem no nada das sombras. Espera-se, então, a ressureição dos justos. Depois, a fé na ressurreição foi universalizada no sentido de se esperar a ressurreição de todos, bons e maus, sendo que os primeiros ressuscitariam para a glória, os segundos, para o opróbio.
3) No período intertestamentário, começou-se a acreditar que a recompensa e a punição já se davam imediatamente depois da morte, ainda antes da ressurreição da carne, esperada para o fim dos tempos. A parábola de Jesus sobre rico epulão e o pobre Lázaro retrata essa ideia. Instala-se, assim, a crença num período intermediário entre a morte e a ressurreição, no qual o “eu” ou a alma do falecido já recebe prêmio ou castigo, mas ainda aguarda a ressurreição. Escritos intertestamentários testemunham esta crença.
4) Com a entrada de Jesus no céu pela ressurreição, a Igreja passa a professar a fé de que aqueles que morrem com Cristo entram também no céu com ele, com uma diferença: ao passo que Cristo já ressuscitou, o fiel de Cristo, por sua vez, aguarda a ressurreição corporal ao mesmo tempo em começa já a receber a recompensa celeste, uma vez que seu “eu”, tendo morrido o corpo, está junto de Cristo, que subiu ao céu como homem. Por pertencer ao corpo de Cristo (a Igreja), o fiel, depois da morte, pode ter acesso a Cristo, que, por sua vez, tem pleno acesso ao Pai.
5) Os fiéis que morrem na amizade de Cristo, mas que ainda têm tendências desordenadas ou alguma “ferrugem” da qual se desfazer para ver a Deus três vezes santo, passam por uma purificação depois da morte, antes de entrarem na glória celeste. É muito raro que alguém deixe esta vida em sintonia perfeita com o amor de Deus. Nesse sentido, o estágio de purificação post mortem, chamado purgatório, tem a função de extirpar todas as incoerências com as quais partimos desta vida, por menores que sejam. O purgatório não está mencionado diretamente na Bíblia, mas a sua existência resulta da mensagem geral da Sagrada Escritura, que em várias passagens ensina que, para ver a Deus santíssimo, é preciso ter o coração puro e as mãos totalmente limpas. Ora, quase ninguém parte deste mundo totalmente puro. A santidade de Deus, de um lado, e a corresponsabilidade do homem, de outro, exigem que o homem seja purificado e se deixe purificar totalmente. Quem purifica no purgatório é Deus, que realiza seu trabalho na medida em que o homem se deixa purificar, colaborando com a ação divina. Rezamos pelas almas do purgatório para que elas se abram generosamente a Deus e sejam purificadas sem resistências, e possam entrar no céu o mais rápido possível.
O texto de Paulo, em seguida, não faz referência direta ao purgatório, mas atesta que nem todos se salvarão do mesmo modo. A construção da nossa vida espiritual (a nossa perfeição na caridade) deve ser forte e deve poder resistir ao juízo de Deus. Caso contrário, poderemos ser salvos, mas como que escapando em meio ao fogo:
(1Cor 3,14-15) "Aquele cuja construção resistir ganhará o prêmio; aquele cuja obra for destruída perderá o prêmio — mas ele mesmo será salvo, como que através do fogo”.
Ademais, a Igreja herdou dos primeiros cristãos o costume de rezar pelos mortos. Essa prática atesta a fé da Igreja na purificação post mortem. Não haveria sentido rezar pelos mortos se ele, tendo partido abertos a Deus em certa medida, mas não totalmente abertos, não podes sem se purificar em vista da abertura total. Aliás, já o II Livro dos Macabeus, às portas da chegada do Novo Testamento, preconizava a oração pelos mortos:
(2Mc 12,44-46) "De fato, se ele não tivesse esperança na ressurreição dos que tinham morrido na batalha, seria supérfluo e vão orar pelos mortos. Mas, considerando que um ótimo dom da graça de Deus está reservado para os que adormecem piedosamente na morte, era santo e piedoso o seu modo de pensar. Eis por que mandou fazer o sacrifício expiatório pelos falecidos, a fim de que fossem absolvidos do seu pecado.”
Observação final: a teologia do purgatório não nega a primazia da graça de Deus, que nos salva gratuitamente por Cristo. A graça, sem a qual não poderíamos nunca ir até Deus, não dispensa, porém, a colaboração humana. Deixar-se purificar por Deus (eis a essência do purgatório) significa acolher a graça que salva e colaborar com ela.
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