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A Bíblia, a ciência e a espiritualidade

O criacionismo que postula que o mundo tenha sido criado há cerca de 6 mil anos e num período de 6 dias é burro. Toma a Bíblia ao pé da letra, sem mediação hermenêutica alguma. Ora, tomar a Bíblia ao pé da letra é uma afronta à própria Bíblia. Os textos sagrados foram escritos numa cultura diversa, com propósitos bem específicos para seu tempo e para seus leitores, em geral usando gêneros literários bem diversos dos gêneros com os quais estamos acostumados.

A doutrina da criação é uma verdade de fé e de razão, mas ela não precisa assumir os traços fundamentalistas que excluem as evidências de que o planeta Terra existe já há 4,5 bilhões de anos e a vida nele, há cerca de 3,5 bilhões de anos. A criação é uma realidade metafísica de dependência radical do ser dos entes criados para com o Ser puro (Ipsum Esse subsistens), que chamamos de Deus. 

Outra coisa: querer refutar a teoria da evolução com base na Bíblia é também burrice, pois a Bíblia não pretende ensinar nem desautorizar teoria científica alguma. A Bíblia foi escrita numa cultura pré-científica. A teoria da evolução deve ser corroborada ou refutada por argumentos científicos, não bíblicos. Se alguém procura uma leitura cristã da evolução, talvez possa encontrar em Teilhard de Chardin uma grande tentativa de síntese, que, de um lado, leva em conta as exigências da matéria, e, de outro, as do espírito, sem ceder seja ao reducionismo materialista, seja àquele espiritualista. 

A Bíblia fala da relação de um povo com seu Deus. Tudo na Bíblia converge para essa relação, que é fundamentalmente amorosa, mas também marcada por conflitos. Há acordos e tensões entre Deus e o povo. Há projeções do povo sobre a imagem de seu Deus, sem dúvida. Um povo violento projeta às vezes sua violência em Deus. Mas o que mais admira e mostra o caráter revelador e transcendente da Bíblia é o contínuo processo de purificação do espírito que se percebe: o povo dá passos no entendimento cada vez menos inadequado de seu Deus, e Deus, tal qual Bem que atrai e ilumina, apresenta-se como força e luz que desencadeiam o desenvolvimento espiritual de um povo. Não crescemos sem tensões, e as tensões do povo na sua relação fundamentalmente amorosa com Deus provoca o crescimento e a purificação do espírito em direção à pacificação total em vista da união total. A meta é a união e o repouso em Deus.

Em Jesus de Nazaré a força iluminadora de Deus atinge o ponto mais alto, de modo que se pode afirmar: Deus mesmo se tornou transparência nele; ele é a encarnação  da Palavra amorosa de Deus entre nós! Jesus, em sua humanidade, está unido totalmente a Deus e repousa nele. As tensões que há no ministério de Jesus não são entre Jesus e a vontade de Deus, mas entre Jesus e a dureza dos corações humanos, que ainda não se tinham aberto totalmente para a união e o repouso em Deus. 

Em Jesus, o Verbo de Deus assume uma natureza humana para demorar-se entre os homens com a transparência adequada a um diálogo que se quer decisivo.

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