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Física, filosofia e teologia



Hoje até físicos estão apontando para uma Realidade irredutível à matéria (partículas e energia). Heinrich Päs, catedrático de física na Alemanha, por exemplo, fala do Uno, uma idea da filosofia antiga que, segundo ele, contém o futuro da física (cf. o seu livro The One: How an Ancient Idea Holds the Future of Physics, 2023). Federico Faggin, cientista italiano de renome internacional em virtude de sua contribuição para a realização dos microprocessadores, defende com vigor a irredutibilidade da consciência ao cérebro (cf. o seu livro Irreducible: Consciousness, Life, Computers, and Human Nature, 2024). Tanto Päs quanto Faggin assumem estas posições em nome das implicações que veem no seu objeto de estudo: a física. Faggin era decididamente materialista, e se sentiu forçado a mudar de posição. 

Pensava-se até bem pouco tempo atrás que o materialismo impor-se-ia, destronando qualquer tipo de metafísica e religião, qualquer aceno a um “além da matéria”. Mas hoje é o materialismo que se vê sendo destronado por grandes e cada vez mais numerosos nomes da ciência. Será que uma coisa se explica pela sua redução aos elementos de que é composta (reducionismo materialista)? Uma explicação verdadeira do mais se daria pelo menos? Com o conceito de "emergência", muitos cientistas reconhecem hoje que um todo qualquer é mais do que a simples soma de suas partes. Há "algo" que paira no todo de uma coisa e lhe confere o ser que tem, para além do mero jogo de seus elementos básicos.

Os antigos filósofos gregos sabiam que a forma (eìdos, morphè), irredutível aos elementos materiais, é que confere o poder derradeiro para que a coisa como tal seja, cuja unidade não pode ser explicada simplesmente pelos elementos que a compõe.

Se os físicos começam a falar do poder do Uno sobre a matéria e da irredutibilidade da Consciência ao cérebro, por que a filosofia e a teologia deveriam se esquecer do discurso sobre o Fundamento ou do  primado do Absoluto transcendente, de Deus?

Para muitos, a filosofia estaria acabada. A teologia também, com mais razão ainda. Outros veem a filosofia apenas lidando com o resultado das ciências e organizando-os ou reduzindo-se à consideração do temporal, do finito e do histórico: filosofia da linguagem, hermenêutica, filosofia social… Mas seria legítimo que ela se esquecesse do tema que a animou desde suas origens gregas — a consideração do Todo, do Fundamento, da Archè?

A teologia — hoje o sabemos bem — tem importantes tarefas ligadas ao finito: teologia do criado, teologia do social, teologia disto ou daquilo. Tudo isso tem o seu lugar, pois que o Deus cristão criou o mundo e não o nega; antes, atribui-lhe importância, e o Filho encarnou-se e se fez um “ser no mundo”. É preciso pensar o mundo e o humano sob a luz de Deus e do Evangelho de Cristo. Mas a teologia não deveria deixar Deus apenas como pano de fundo de suas considerações, como muitas vezes parece acontecer. Se a física começa a romper as teias do finito e dá indícios de uma mudança de paradigma que supera o materialismo, a teologia não deveria colocar com mais ênfase o tema de Deus? Em vez de se prender preponderantemente a análises infinitas de textos e realidades, não deveria, com mais vigor, abrasar-se de amor pela Realidade da qual depende em primeiríssimo lugar o Reino que era o objeto central do anúncio de Jesus? O Reino não vem sem a atuação de Deus mesmo, assim como a multiplicidade, o mundo de coisas e a capacidade do homem de “saber que sabe” não se explicam sem o poder do Uno e da consciência. 

Claro, o conceito de Deus precisa ser pensado e repensado com muito cuidado, pois em vez de fazer referência à Realidade que Agostinho chamava de Deus secretissimus, pode ser usado e abusado para construir ídolos em vez de apontar para o verdadeiro Deus. O rosto do Deus humanado em Jesus é um ícone, e nos convida contemplar a Realidade para a qual aponta. A teologia precisa ajudar o homem a abrir o seu caminho para a compreensão de que o Deus secretissimus é também, como diz o mesmo Agostinho, o Deus præsentissimus.

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