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Um novo "tempo-eixo"?

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Ao perlustrarmos os últimos escritos vazianos, principalmente os escritos críticos ou de ocasião[1], uma das questões que saltam aos olhos é, sem dúvida, o reconhecimento da crise da modernidade, crise na qual estamos mergulhados. O relevo da crise diz respeito sobretudo à crise ética e à crise de sentido. Na obra de Padre Vaz, vemos claramente que a crise da modernidade tem como causa, em última análise, a crise do “saber fundamental por excelência, a metafísica”[2].

O projeto filosófico moderno caracteriza-se fundamentalmente, segundo Padre Vaz, pela ambição titânica de transferir para a imanência do mundo o sentido radical da existência, sentido que, segundo o itinerário que encontrou sua mais rigorosa expressão na metafísica tomásica do esse, prendia-se à transcendência do Absoluto real em sua absoluta irredutibilidade.

Só à “inteligência espiritual”[3], em sua abertura constitutiva para o absoluto do ser, é dado reconhecer o Existente como superior summo meo e interior intimo meo[4]. A categoria de espírito e a relação de transcendência, estudadas por Padre Vaz em Antropologia filosófica I e II, mostram suficientemente que o homem é estruturalmente um ser metafísico, isto é, capax entis. Entretanto, no clima intelectual da modernidade, em virtude da “inversão dos termos do paradigma clássico”[5], a inteligência espiritual sofreu uma nova destinação, que significou, no fundo, seu processo de dissolução[6].

Ora, se a inteligência humana é dotada de “um incoercível élan metafísico”[7], a crise da metafísica só pode gerar crises nos diversos domínios da cultura. Com efeito, Padre Vaz vê desfilar no nosso tempo uma ingente procissão de pseudoabsolutos que pretendem substituir o Absoluto real, para o qual a inteligência humana está constitutivamente orientada[8]. Se o Absoluto real não é reconhecido, é natural que realidades finitas candidatem-se a tomar o seu lugar, uma vez que a natureza espiritual da inteligência e da vontade em seu dinamismo ilimitado lança o homem sem cessar para a afirmação de um sentido absoluto.

Para mostrar mais claramente a inflexão operada pela modernidade no nosso globo simbólico, cremos ser útil e necessária a menção ao que Padre Vaz fez questão de registrar em sua obra. Trata-se do assim chamado “tempo-eixo” da história da humanidade, ocorrido no mundo antigo, cuja significação elevou-se à condição de stella rectrix da história humana e, de modo particular, veio a orientar o sistema simbólico de nossa civilização ocidental até pelo menos o aparecimento da modernidade ou até a efetivação da modernidade dita pós-cristã. Ora, na visão de Padre Vaz, o que a modernidade pretende, no fundo, é fundar um novo tempo-eixo em contraposição ao primeiro. Mas será que tal pretensão está à altura do homem? Ou conforme a sua dignidade espiritual?
Na esteira de Karl Jaspers e, sobretudo, de Eric Voegelin, Padre Vaz reconhece a importância do tempo-eixo[9]. Trata-se, com efeito, de um momento histórico muito rico em significação. Situando-se no tempo entre 800 a.C. e 200 a.C. e no espaço geográfico que vai do Extremo Oriente até o Mediterrâneo, o tempo-eixo viu aparecer a formulação das grandes mensagens religiosas e filosóficas das grandes civilizações do mundo antigo.

O que caracterizou sobremaneira esse período fecundo foi o florescimento da consciência explícita de uma realidade realmente transcendente ou metacósmica. Abrindo a consciência humana para além dos rígidos quadros cosmocêntricos, a experiência da Transcendência real configurou uma consciência mais profunda do homem em sua participação no Ser:
Segundo a análise de Voegelin, apoiada nos documentos literários das diversas culturas do tempo-eixo, delineia-se então com nitidez cada vez maior a idéia de uma participação no Ser como totalidade que, compreendendo o sensível, vai, no entanto, infinitamente além dos seus limites e se apresenta ao homem como objeto da sua experiência mais profunda. É esse o núcleo germinal do problema da transcendência[10].

Duas expressões dessa experiência, “as duas mais radicais e consequentes”[11], ao se encontrarem e se imbricarem, vieram a constituir o globo simbólico da nossa civilização ocidental. São elas, de um lado, a experiência da transcendência efetivada pela tradição bíblica, e, de outro, a descoberta grega da transcendência do inteligível. Voegelin designou a irrupção da Transcendência real na consciência do povo bíblico de diferenciação profética, e a irrupção na consciência do povo grego, de diferenciação noética[12]. A tradição bíblica caracteriza-se por reconhecer um único Deus concebido como Criador, Senhor e Fim da história, a quem cabe a iniciativa de ir ao encontro do homem e oferecer-lhe a salvação pela sua Palavra (que é Cristo para o Cristianismo), que, vinda do alto (oriens ex alto), deve ser acolhida na fé. A tradição grega, por sua vez, reconheceu, como fica claro num de seus maiores filósofos, Platão, a transcendência do inteligível sobre o sensível, transcendência esta vista como Ideia absoluta e Princípio de inteligibilidade e de ordem, cuja riqueza inteligível a inteligência humana tentou expressar como Ser, Uno, Bem e Verdade transcendentes.

O movimento característico da tradição bíblica é a descida (katábasis) do Transcendente por meio de sua Palavra que é acolhida pelo crente, enquanto o movimento característico da tradição grega é a subida (anábasis) da inteligência do filósofo em direção à Transcendência, o que equivale à mais alta operação da inteligência. Padre Vaz, contudo, garante: “Em ambos os casos, porém, a fonte da Transcendência real permanece infinitamente distante e não pode ser ‘apreendida’ pela razão finita, o que dá origem ao tópico do ‘Deus inapreensível’”[13]. O evidente elemento comum entre os dois movimentos, e que está na base da possibilidade do diálogo entre fé e razão, é a estrutura teocêntrica. Sob essa comum estrutura, forjou-se a concepção do humanismo teocêntrico.

A partir do século II da era cristã, essas duas experiências da Transcendência encontraram-se, confrontaram-se e se entrelaçaram para formar a matriz simbólica da civilização ocidental sob a égide do Cristianismo. Padre Vaz ressalta que a concepção cristã de Deus, para cuja formulação confluíram a tradição bíblica e a filosofia grega, alcançou grande rigor especulativo na obra de Tomás de Aquino:
[...] o Deus Criador da Bíblia e a Idéia absoluta da filosofia grega, já identificada no médio e neoplatonismo com a Inteligência suprema, convergem, numa síntese de extraordinária densidade especulativa, para constituir a concepção de Deus da teologia cristã, que encontrará sua expressão mais rigorosa nas primeiras questões da Suma de Teologia, de Santo Tomás de Aquino[14].

Desse modo, no que toca às questões propriamente filosóficas, a razão humana pôde de fato reconhecer sua estrutura decididamente teocêntrica. A razão, em suas inquisições, mostrou-se orientada, em última análise, para a afirmação e o reconhecimento da Transcendência real. Tal a experiência que desde as origens gregas do filosofar se patenteou, encontrando em Tomás de Aquino uma expressividade ímpar. 

Ora, a modernidade representou, no fundo, um verdadeiro “abalo sísmico”[15] nessa história espiritual do Ocidente. A ideia de homem, que antes era pensada em sua dependência para com o Transcendente, passou a referir-se a si mesma, numa reivindicação de autonomia absoluta. Trata-se de uma inflexão operada na concepção mesma de homem e da fundação de um novo humanismo: o humanismo antropocêntrico. Padre Vaz vale-se dos dois grandes paradigmas da tradição, que remontam a Platão e à Bíblia, para fazer ver a inflexão operada pela modernidade: o paradigma da medida e o paradigma da imagem. O primeiro, que opôs Platão a Protágoras, diz: “Deus é a medida de todas as coisas”; ao que a modernidade retruca: “O homem é a medida de todas as coisas”. O segundo, presente também em Platão, mas consagrado definitivamente pela Bíblia, afirma: “O homem é imagem e semelhança de Deus”; ao que retruca o humanismo antropocêntrico: “Deus é imagem e semelhança do homem”[16].

Mas um novo tempo-eixo é possível? É mesmo desejável? Está conforme à natureza do homem? Não iria privá-lo de sua mais alta expressão: a relação com o Absoluto transcendente?

[1] Podemos dividir a obra de Padre Vaz em dois blocos distintos. Temos, de um lado, as obras sistemáticas e, de outro, um grande número de artigos, editoriais, notas, recensões, publicados na revista Síntese ou em outros periódicos. O primeiro bloco lança em forma sistemática os fundamentos teóricos das grandes opções de Padre Vaz, e é constituído pelos dois volumes da Antropologia filosófica, os dois volumes da Introdução à ética filosófica e, de certa maneira, pelo último livro publicado, os Escritos de filosofia VII. No segundo bloco, em grande parte reunido nos Escritos de filosofia I, II, III e VI, temos mais visível um confronto com a modernidade a partir das grandes opções vazianas; daí o fato de chamarmos esses escritos de críticos. A distinção que aqui fizemos inspira-se, de alguma maneira, em: MAC DOWELL, João Augusto A. A. História e transcendência no pensamento de Henrique Vaz. In: PERINE, Marcelo (org.). Diálogos com a cultura contemporânea: Homenagem ao Pe. Henrique C. de Lima Vaz, SJ. São Paulo: Loyola, 2003, p. 13.
[2] EF III, p. 165.
[3] Cf. AF I, p. 239-289.
[4] A dialética do superior summo meo e do interior intimo meo foi exposta por Santo Agostinho nas suas Confessiones, III, 6. Padre Vaz diz a respeito: “[…] o transcendente está além (dialeticamente, não espacialmente!) do nosso espírito finito, situado e mutável; mas, exatamente enquanto transcendente, ele se mostra imanente (in manens, o que permanece) ao espírito que o pensa, pois, se assim não fosse, estaria sujeito à lei da irredutível exterioridade que rege as relações entre os seres finitos” (EF III, 197).
[5] AF I, p. 260.
[6] Com efeito, Padre Vaz fala de “processo de dissolução da inteligência espiritual que acompanha o desenvolvimento da filosofia moderna” (AF I, p. 264).
[7] EF III, p. 184.
[8] Cf. EF III, p. 198-199.
[9] “As peculiaridades desse tempo da história, que foi denominado ‘tempo-eixo’ (Achsenzeit) mereceram a atenção dos historiadores durante todo o século XIX, quando foi possível reconstituir a cadeia das grandes civilizações eurasianas do primeiro milênio a.C. Elas estão na origem do problema filosófico em torno da direção axial da História, tema das Lições sobre a Filosofia da História de Hegel, e retomado em nosso século por Karl Jaspers no seu Origem e Meta da História. Mas foi o grande historiador contemporâneo Eric Voegelin (1901-1985) que, com soberana erudição e profunda sensibilidade filosófica, perscrutou o alcance e a significação da extraordinária experiência espiritual que surgia simultaneamente em vários focos de civilização[...]” (EF III, p. 202).
[10] EF III, p. 204.
[11] MFC, p. 297.
[12] Cf. MFC, p. 297.
[13] MFC, p. 300.
[14] HH, p. 162.
[15] HH, p. 163.
[16] Cf. HH, p. 163.

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