Pular para o conteúdo principal

Presença do Ser ao homem e do homem ao Ser

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

O estudo sobre o homem, segundo Padre Vaz, mostra que no seio do espírito humano há a presença do Ser, que é também Bem, capaz de fazer com que o homem, que é sujeito que procura expressar-se a si mesmo, no movimento de sua autoposição como sujeito, extrapole todos os limites eidéticos de sua condição finita e seja lançado na ilimitação ou infinitude do Ser. Nem a natureza ou o mundo nem a sociedade ou a história podem exaurir o dinamismo do espírito humano, que é impulsionado pelo “excesso ontológico”[1], presente no seu íntimo, a ultrapassar todas as configurações finitas da realidade. O horizonte finito da natureza ou do mundo, da sociedade ou da história, não pode realizar o homem.[2] Enganam-se, pois, os pensadores que pretendem reter o dinamismo do espírito humano numa ou noutra dessas realidades. O homem mostra-se, na verdade, como ser para a transcendência. Aliás, é o “excesso ontológico” que, sendo a causa do dinamismo do espírito humano em sua abertura ao Ser em toda a sua amplitude ilimitada, é o fundamento derradeiro da relação do homem com o mundo e com os outros, na medida em que a presença do homem no mundo e na sociedade é uma presença espiritual, marcada pelo dinamismo que é próprio ao espírito.

O dinamismo do espírito é, para Padre Vaz, a fonte mais profunda da história e da constituição das figuras, representações ou imagens do Absoluto nas diversas culturas, nas religiões e nas filosofias. É exatamente esse dinamismo, decorrente do “excesso ontológico” presente ao espírito, que impulsiona o homem a “ser mais” e a levar a cabo o desenvolvimento da história. Pela sua abertura à transcendência, o homem não pode se deter diante de nenhuma configuração finita. Segundo Padre Vaz, “a inexaurível gestação de formas de busca ou expressão do Absoluto que acompanha o curso histórico [e que] é a atestação mais evidente da presença da relação de transcendência na constituição ontológica do sujeito”.[3] O papa Bento XVI, em sua carta encíclica Caritas in veritate, em uma linguagem propriamente religiosa, diz coisa semelhante, ao afirmar que o desenvolvimento humano está fundamentado na relação do homem com Deus – relação de transcendência – e que esta relação é o que alimenta o anseio constitutivo do homem a “ser mais”.[4]

O método assumido por Padre Vaz na constituição do discurso da Antropologia filosófica é dialético não só porque nele a autoexpressão do homem obedece ao movimento dialético da suprassunção da Natureza na Forma pela mediação do Sujeito, mas também porque a inteligibilidade da essência do homem segue um caminho em que cada região categorial do ser do homem, em virtude do princípio de ilimitação tética, é suprassumida em outra região mais fundamental, até que se atinja a região das categorias de unificação, que oferece resposta adequada à questão filosófica – o que é o homem? Dito de outro modo, cada categoria - ou conceito concernente ao ser do homem -  é suprassumida em uma categoria mais fundamental até que se chegue à categoria de pessoa, que expressa a essência do homem, sem reducionismos.

Entre as categorias de estrutura, a categoria do espírito é a que suprassume as de corpo próprio e de psiquismo; entre as categorias de relação, a categoria de transcendência suprassume as de objetividade e de intersubjetividade. No quadro da região categorial de unificação, a categoria de realização suprassume as regiões categoriais de estrutura e relação, oferecendo campo para, finalmente, se alcançar a “ideia do homem” na categoria de pessoa.[5] Esta “ideia”, pois, só se alcança pelo reconhecimento de que a estrutura do homem é coroada pelo espírito, o que o coloca em relação com a transcendência e faz dele uma pessoa. A categoria de pessoa, expressando o ser mesmo do homem, é o fundamento de todas categorias elaboradas pela Antropologia filosófica, de modo que, se no plano da inteligibilidade para nós, é a última categoria a ser elaborada; no plano da inteligibilidade em si, é a primeira e mais fundamental categoria, que confere a todas as manifestações do homem o selo mais profundo de humanidade.[6]

E é a vida segundo o espírito que, sendo a vida propriamente humana, caracteriza o homem como pessoa. “A pessoa é, pois, o sujeito adequado da atribuição da vida segundo o espírito [...]”.[7] Ora, o caráter espiritual do homem enquanto homem ou do homem como pessoa – nível ontológico – faz do homem um animal metaphysicumPadre Vaz assevera que “no nível do espírito, a pessoa é constitutivamente, enquanto ser inteligente e livre, presença à infinitude do Ser”.[8] Em virtude de sua dimensão espiritual, a pessoa humana tem, de alguma maneira, uma experiência do ser em sua infinitude, na medida em que “experiência” pode ser entendida como “a face do pensamento que se volta para a presença do objeto”.[9] Sim, na visão de Padre Vaz, o ser é uma presença ao espírito humano e o espírito humano está presente ao ser: “presença do ser ao espírito e do espírito ao ser, acolhimento e dom [...]”.[10]


[1] O “excesso ontológico” do qual fala Padre Vaz é uma realidade própria do homem que é reconhecida pelo dinamismo do espírito em sua abertura constitutiva ao Ser. Pelo “excesso ontológico”, o homem se sobrepõe ao mundo e à história e avança além do ser-no-mundo e do ser-com-os-outros na busca de alcançar o fundamento último para o Eu sou primordial. Cf. AFII, p. 93s.
[2] Cf. AFII, p. 34 e p. 93 e 94.
[3] AF II, 94.
[4] BENTO XVI. Caritas in veritate (29-6-2009), n. 29.
[5] Cf. AF II, 216.
[6] Cf. AF II, 192-193.
[7] AF II, 193.
[8] AF II, 193.
[9] EF I, 243.
[10] AF I, 222.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bíblia: inspiração, pedagogia e revelação

Inspiração bíblica: Deus fala na história e não por ditado Durante muito tempo, imaginou-se a inspiração bíblica segundo um modelo simplificado, quase mecânico: Deus “ditaria” e o ser humano apenas escreveria. Ou, de modo mais sofisticado, Deus inspiraria o autor humano a escolher cada palavra disponível na sua cultura para expressar ideias, que seriam queridas diretamente por Deus, o que chega a quase equivaler a um ditado. Essa compreensão, embora bem-intencionada, não faz justiça nem à riqueza dos textos bíblicos nem ao modo concreto como Deus age na história. Hoje, a teologia bíblica e o Magistério da Igreja ajudam-nos a entender a inspiração não como um ditado celeste, mas como um processo vivo, histórico e espiritual, no qual Deus conduz um povo inteiro e, dentro dele, suscita testemunhas e intérpretes. A Bíblia não caiu do céu pronta. Ela nasceu na vida concreta de um povo que caminhava, sofria, lutava, errava, crescia, esperava e rezava. Por isso, antes de falar de livros inspi...

Metafísica essencial

Cornelio Fabro foi quem realçou a centralidade do ser como ato intensivo na metafísica de S. Tomás  Metafísica essencial:  1. Ipsum Esse É a perfeição máxima formal e real. Ato puro. Intensidade máxima. É participável pelas criaturas através de essências limitadas e da doação de ser ( actus essendi ) a tais essências.  • O ipsum Esse subsistens é a plenitude formal e atual do ser. Não é apenas a perfeição máxima “formal” no sentido lógico, mas o ato mesmo da formalidade infinita.  • Fabro enfatiza que o Esse divino é incomunicável em si mesmo (ninguém nem nada fora de Deus pode possuir ou receber a infinitude divina), mas é participável secundum quid , na medida em que Deus doa o ser finito às essências criadas.  • Aqui está a raiz da analogia entis : há continuidade (participação) e descontinuidade (infinitude divina versus finitude criada). ⸻ 2. Essência ( esse ut participabile ) É o ser enquanto participável, receptivo, em potência. Em si não é atual, mas u...

Fenômeno, númeno e a assimptoticidade do sentido: uma leitura crítica de Kant

A distinção entre fenômeno e númeno é um dos eixos centrais da filosofia crítica de Immanuel Kant. Em sua formulação original, ela tem um propósito delimitador: mostrar que a razão humana só conhece aquilo que aparece segundo as condições da sensibilidade e as categorias do entendimento. Fenômeno é, assim, o objeto tal como é dado nas condições do nosso aparato cognitivo; númeno, o objeto considerado em si mesmo, independentemente dessas condições. A tese kantiana parece, à primeira vista, conduzir a um agnosticismo radical: se só conhecemos fenômenos, então nada sabemos — absolutamente nada — da realidade tal como ela é. Contudo, essa interpretação maximamente cética não é necessária, e, filosoficamente, tampouco sustentável. E aqui começa a possibilidade de uma leitura mais elevada. 1. Porque o agnosticismo radical não se sustenta Mesmo Kant, ao afirmar a existência problemática do “númeno” como “coisa em si”, admite que há algo que se encontra na base da experiência. A própria ideia...