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Do lado de fora, o mundo envolve a Igreja com suas crises: a fome e o desemprego, a violência urbana e o terrorismo, entre tantas outras. Do lado de dentro, pulsa um desafio inadiável: reorientar a vida litúrgica para seu verdadeiro foco: celebrar a Páscoa do Ressuscitado.
Excessos e desvios
No próximo dia 4 de dezembro, vamos comemorar o 46º aniversário natalício da Constituição conciliar sobre a liturgia, a Sacrosanctum Concilium, aprovada em sessão solene do Vaticano II com 2.147 votos, e apenas 4 sufrágios negativos. Após um período de entusiasmo e experiências de todo tipo, hoje a Igreja Católica se vê diante de um desafio que pede atitudes bem concretas: reformar a reforma pós-conciliar para recuperar valores essenciais da vida litúrgica.
De todos os quadrantes, erguem-se denúncias e protestos contra o clima de nossas celebrações: excesso de ruído – mesmo disfarçado de música – nas assembléias dominicais. Excesso de palavras, autêntica verborragia que ameaça deixar a Palavra de Deus em segundo plano. Evidências de libertinagem litúrgica, com os agentes da celebração, leigos e presbíteros, muito à vontade para acrescentar seus “cacos” aos gestos e palavras rituais. Deslocamento da celebração para o show, quando se confunde ação litúrgica com atuação televisiva.
Homilias desgarradas da realidade comunitária, mas centradas em aspectos estruturais da vida socioeconômica que fogem à iniciativa imediata dos ouvintes. E muito mais...
Redescobrir o silêncio
Em dezembro de 2003, o Papa João Paulo II publicava sua brevíssima Carta apostólica Spiritus et Sponsa [O Espírito e a Esposa], na comemoração dos 40 anos da Sacrosanctum Concilium. Já naquela época, o Papa citava o Concílio, recordando que a ação litúrgica “é ação sagrada por excelência, cuja eficácia, no mesmo título e grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja”. Boa lembrança para aqueles utilitaristas que “aproveitam” a assembléia litúrgica para resolver outros problemas e tratar de outros assuntos, que se constituem verdadeiros quistos e corpos estranhos no corpo da celebração litúrgica.
No mesmo texto [nº 13], João Paulo II advertia: “Um aspecto que é preciso favorecer de modo especial em nossas comunidades é o seguinte: a experiência do silêncio. Temos necessidade dele para acolher em nossos corações a plena ressonância da voz do Espírito Santo e para unir mais estreitamente a oração pessoal à Palavra de Deus e à voz pública da Igreja. Em uma sociedade que vive de maneira sempre mais frenética, muitas vezes atordoada pelos ruídos e dispersada naquilo que é efêmero, redescobrir o valor do silêncio é vital”.
Diante da atual popularização de práticas e métodos de meditação não-cristãos, o Papa perguntava: “Por que não adotar, com audácia pedagógica, uma educação específica para o silêncio no interior de coordenadas próprias da experiência cristã? Temos diante dos olhos o exemplo de Jesus que ‘saiu de casa e se retirou a lugar deserto, e ali ele rezava’ (Mc 1,35). Entre seus diversos momentos e sinais, a Liturgia não pode negligenciar o silêncio”.
Reencontrar o caminho
Muita gente acredita que nos desviamos da estrada real e entramos por um desvio litúrgico. Se antes havia queixas (justificadas!) contra o rubricismo que engessava a celebração litúrgica, agora caímos na terra de ninguém da libertinagem, onde qualquer um se sente no direito de manipular a celebração, dando-lhe contornos políticos, mudando-a em teatro ou em preferências poéticas intimistas, ao ignorar os gestos e palavras essenciais ao rito da Igreja apostólica.
Em outubro de 2003, falando à assembléia anual dos Bispos do Canadá, o Cardeal Arcebispo de Malines (Bélgica), Mons. Godfried Danneeels, observava com propriedade: “A participação ativa na liturgia, o fato de prepará-la juntos, o cuidado de aproximá-la o mais possível da cultura e da sensibilidade dos fiéis podem conduzir imperceptivelmente a uma espécie de apropriação da liturgia. A participação e a celebração mútua podem conduzir a uma forma sutil de manipulação. Quando assim ocorre, a liturgia é não somente despojada de seu caráter intangível – o que não é mau em si -, mas se torna, em certo sentido, propriedade daqueles que a celebram, como um domínio abandonado à sua ‘criatividade’. Aqueles que estão a serviço da liturgia – padres e leigos – acabam como se fossem seus ‘proprietários’”.
Na ânsia de encontrar o caminho, as paróquias redobram esforços exatamente naquilo que é puramente ação humana e horizontal [mais flores, mais cânticos, mais procissões, mais encenações, mais palavras...], neutralizando, por excesso, o sentido profundo dos gestos e palavras e deixando cada vez mais oculta a ação divina nos seus mistérios. Naturalmente, tais procedimentos batem de frente com as orientações de João Paulo II na Exortação apostólica Sacramentum Caritatis: “A simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições inoportunas”. (SCa, 40.)
O choque da realidade
Tudo isto aponta para a mesma direção: o estilo de vida que adotamos não se enquadra com a realidade dos mistérios celebrados. Agitados, ruidosos, hipertensos, presos a um aranhol de ninharias e preocupações materiais, incapazes de erguer os olhos aos céus durante a semana, a celebração dominical não recebe de nossa parte um olhar contemplativo, um abandono silencioso à ação de Deus. Nem na vida, nem na liturgia. Por isso mesmo, muitas vozes afirmam que a liturgia só será renovada quando nossas vidas forem renovadas. E que é de fora para dentro que tal renovação acontecerá na vida litúrgica da Igreja.
Creio que há uma verdade nessa tese: se nós vivemos como pagãos, venerando os ídolos de plantão – dinheiro, sexo, sucesso e poder -, que sentido pode ter para nós a atualização da morte e ressurreição do Cristo Senhor? Nossa tendência natural será a de transportar para o coração da ação litúrgica os mesmos sentimentos e atitudes de nosso dia-a-dia.
E assim, aquilo que devia ser a Páscoa dominical acaba tendo ares de um velho filme, sem arte e sem vida, que não vale a pena ver de novo... (ACS)
Padre, sua bênção.
ResponderExcluirMuito interessante o artigo.
Recentemente fui escolhido pra ser coordenador aqui da música litúrgica paroquial... Há muito o que se fazer, e há também quem queira resistir a qualquer mudança...
Estes artigos que o senhor põe neste espaço me são de muita ajuda. Agradeço imensamente e, mais uma vez, peço-lhe a sua bênção.
Fábio
Fábio,
ResponderExcluirLutemos por uma liturgia que seja de fato digna do mistério que é celebrado.
Seja feliz!
excelente artigo, desejo que os bispos leiam!!
ResponderExcluirPadre Elílio, sua benção!
ResponderExcluirAproveitando a oportunidade, já que o assunto é sobre a liturgia, o sr. poderia me tirar uma dúvida referente a uma parte da encíclica mediator dei?
Eis a parte na qual surgiu minha dúvida:
"106 ...Aliás, para melhor e mais claramente manifestar-se a participação dos fiéis no sacrifício divino por meio da comunhão eucarística, o nosso imortal predecessor Bento XIV louva a devoção daqueles que, não só desejam nutrir-se do alimento celeste durante a assistência ao sacrifício, mas preferem alimentar-se com hóstias consagradas no mesmo sacrifício, se bem que, como ele declara, participemos verdadeira e realmente do sacrifício, mesmo quando se trate de pão eucarístico devidamente consagrado antes. Assim, com efeito, escreve: "Embora participem do mesmo sacrifício não só aqueles aos quais o sacerdote celebrante dá parte da Vítima por ele oferecida na mesma missa, mas também aqueles aos quais o sacerdote dá a eucaristia que se costuma conservar; nem por isso a Igreja proibiu no passado, ou proíbe atualmente, que o sacerdote satisfaça à devoção e ao justo pedido daqueles que assistem à missa e pedem para participar do mesmo sacrifício, também por eles oferecido na maneira que lhes é apropriada; antes aprova e deseja que assim se faça e reprovaria os sacerdotes que, por sua culpa ou negligência privassem os fiéis desta participação". (108)
Sinceramente, eu não consegui entender essa parte...
Padre, se o senhor puder nos iluminar, ficariamos grato...
Pedro Henrique
...A eucaristia que se costuma conservar antes, a Igreja não proibiu no passado nem atualemente, que o sacerdote satisfaça à devoção e ao justo pedido daqueles que assistem à missa e pedem para participar do mesmo sacrifício, também por eles oferecido na maneira que lhes é apropriada; antes aprova e deseja que assim se faça e reprovaria os sacerdotes que, por sua culpa ou negligência privassem os fiéis desta participação...
ResponderExcluirNão entendi mesmo...
Pedro
Prezado Pedro,
ResponderExcluirO texto diz: 1) É louvável a devoção de quem deseja comungar da hóstia consagrada na mesma Missa de que participa; 2) Isso, no entanto, não desmerece a participação daqueles que, participando verdadeiramente da Missa, comungam da hóstia consagrada antes; 3) Os sacerdotes devem estar dispostos a atender ao pedido dos fiéis que desejam comungar da hóstia consagrada na mesma Missa de que participam.
Mas aí é que eu encontrei dificuldade. eis:
ResponderExcluirNa segunda questão, no qual o sr. esclarece que "não desmerece a participação daqueles que, participando verdadeiramente da Missa, comungam da hóstia consagrada antes;"
As pessoas comungam da hóstia consagrada na mesma Missa... Nunca tinha ouvido falar de se comungar da hóstia consagrada antes, que obviamente devia estar conservada.
Obviamente, na questão 3 de que os Sacerdotes "devem estar dispostos a atender ao pedido dos fiéis que desejam comungar da hóstia consagrada na mesma Missa de que participam"
eu imagino que o Papa devia estar tratando de problemas referentes a sua época, já que hoje o problema é inverso. Oferecem-se as hóstias consagradas até para pessoas divorciadas, para protestantes, sem fazer referência de que a pessoa precisa abraçar a fé católica integral e firmemente e estar em estado de Graça.
Pedro Henrique
Caro Pedro,
ResponderExcluirAcontece muitas vezes que a hóstia distribuída numa Missa é a que foi consagrada numa Missa anterior. O texto diz apenas que é mais significativo que os fiéis possam comungar da hóstia consagrada na própria Missa de que participam. Quanto a quem está apto para comungar ou não é outra questão, na qual o trecho do texto não tocou. Evidentemente, só deve comungar quem está em estado de graça; essa é a doutrina constante da Igreja, que não mudou.
Grato pela resposta, Padre.
ResponderExcluirPedro