Padre Elílio de Faria Matos Júnior
A concepção que se tinha da razão nas grandes filosofias da Antigüidade e da Idade Média era bem diversa da concepção que se foi delineando já a partir do ocaso da Idade Média, com o advento do problema dos universais e sua solução em favor do nominalismo encontrada bem claramente em Guilherme de Ockham (+1349).
A razão antiga e medieval, tal como a podemos encontrar num Platão, num Aristóteles, num Plotino, num Agostinho, num Tomás de Aquino, possui um caráter decididamente teológico. O adjetivo teológico aqui, evidentemente, não se refere à teologia revelada, que assume o seu discurso do ato de fé numa revelação divina[1]. Por razão teológica entendemos uma certa concepção de razão, segundo a qual, ao filósofo, no próprio ato do exercício filosófico, num movimento de anabasis (subida), é possível deparar-se com o Princípio de todas as coisas (o divino), ainda que não o possa compreender analiticamente, já que o excesso de sua luz inteligível está para o filósofo como o sol para os olhos do morcego[2]. O grande filósofo brasileiro, Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, de saudosa memória, chamou essa razão teológica de inteligência espiritual[3]. Por ela, pode-se contemplar, com o que Platão chamou o "olho da alma", o Absoluto, que está para além da multiplicidade das coisas e dos conceitos, e que lhes dá verdadeiro fundamento. Não se trata de "dominar" intelectualmente o Absoluto, mas de fruí-lo como terminus ad quem do processo do filosofar. Uma razão, assim teológica, trabalha com uma concepção analógica do ser, não unívoca. Ela reconhece a transcendência do Princípio no qual o Inteligente em ato e o Inteligível em ato se identificam[4], dando fundamento, assim, à inteligibilidade objetiva e radical de todas as coisas[5]. Ela não procura resolver a inteligibilidade radical em suas categorias finitas e limitadas ou dissecar o ser na imanência do sujeito. Por isso entrega-se ao frui, à fruição desinteressada e deleitosa do Absoluto[6].
Entretanto, a partir da filosofia tardo-medieval, o conceito analógico de ser vai cedendo lugar ao conceito unívoco de ser. Há uma passagem progressiva do ser à representação, do pólo objetivo à imanência do sujeito. Se o ser, em sua transcendência real, ocupava o centro dos mais altos esforços de especulação, que vão de Platão a Tomás de Aquino, o nominalismo coloca no centro a representação (ser ut nomen) resolúvel na imanência do sujeito. Descartes, considerado o pai da filosofia moderna, propõe o ponto de partida de sua reflexão filosófica em bases inteiramente imanentistas, de modo que a atenção desloca-se do ser para o sujeito cognoscente, que, possuindo um conceito unívoco de ser, é capaz de "domesticá-lo" segundo suas próprias medidas: isso é o que se percebe no ideal, inspirado na matemática, das idéias claras e distintas. Descartes, todavia, depois de lançar os fundamentos em bases idealistas, caminha em direção ao realismo ao reconhecer Deus como o fundamento sem o qual não seria possível o conhecimento.
O caminho do ser à representação atinge seu clímax em Immanuel Kant (+1804). Segundo o filósofo de Königsberg, não temos acesso à "coisa em si", de tal modo que todo nosso conhecimento é o resultado da aplicação das formas a priori do “eu penso” ao dado sensível. O conhecimento é, assim, construção do sujeito. A forma do conhecimento são as formas a priori do sujeito, e a matéria, o dado sensível. Desse modo, para Kant, a metafísica, com seus temas básicos sobre a alma, o mundo e Deus, está destituída de todo caráter científico, pois lida com as formas puras sem poder aplicá-las a qualquer dado sensível.
Ao longo desse caminho que vai do ser à representação, percebe-se a efetivação da transposição da Transcendência real para a transcendência lógica. Isto é: se antes o ser, em sua transcendência real, é que era central na filosofia, agora o sujeito, na sua imanência, é que é central. A razão deixa de ser uma inteligência espiritual e passa a ser uma instância operacional. Deixa de ser uma razão substantiva, que confere sentido e valor à realidade, e passa a ser razão instrumental, lidando apenas com os fenômenos e as relações lógicas entre eles. Usando as categorias de S. Agostinho, a ratio superior, que procura ir até o fundamento último, a algo de básico, cede lugar à ratio inferior, que apenas lida com a multiplicidade dos fenômenos.
Hegel, percebendo tal ruptura, tentou recuperar o vigor metafísico da razão, ao construir seu sistema como sistema do Espírito Absoluto, embora o tenha feito no clima da subjetividade, próprio da filosofia moderna. Depois de Hegel, entretanto, qualquer tentativa de discurso metafísico foi condenado pelo establishment filosófico ao non-sense. A metafísica foi simplesmente banida como espúria e ilegítima.
A razão antiga e medieval, tal como a podemos encontrar num Platão, num Aristóteles, num Plotino, num Agostinho, num Tomás de Aquino, possui um caráter decididamente teológico. O adjetivo teológico aqui, evidentemente, não se refere à teologia revelada, que assume o seu discurso do ato de fé numa revelação divina[1]. Por razão teológica entendemos uma certa concepção de razão, segundo a qual, ao filósofo, no próprio ato do exercício filosófico, num movimento de anabasis (subida), é possível deparar-se com o Princípio de todas as coisas (o divino), ainda que não o possa compreender analiticamente, já que o excesso de sua luz inteligível está para o filósofo como o sol para os olhos do morcego[2]. O grande filósofo brasileiro, Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, de saudosa memória, chamou essa razão teológica de inteligência espiritual[3]. Por ela, pode-se contemplar, com o que Platão chamou o "olho da alma", o Absoluto, que está para além da multiplicidade das coisas e dos conceitos, e que lhes dá verdadeiro fundamento. Não se trata de "dominar" intelectualmente o Absoluto, mas de fruí-lo como terminus ad quem do processo do filosofar. Uma razão, assim teológica, trabalha com uma concepção analógica do ser, não unívoca. Ela reconhece a transcendência do Princípio no qual o Inteligente em ato e o Inteligível em ato se identificam[4], dando fundamento, assim, à inteligibilidade objetiva e radical de todas as coisas[5]. Ela não procura resolver a inteligibilidade radical em suas categorias finitas e limitadas ou dissecar o ser na imanência do sujeito. Por isso entrega-se ao frui, à fruição desinteressada e deleitosa do Absoluto[6].
Entretanto, a partir da filosofia tardo-medieval, o conceito analógico de ser vai cedendo lugar ao conceito unívoco de ser. Há uma passagem progressiva do ser à representação, do pólo objetivo à imanência do sujeito. Se o ser, em sua transcendência real, ocupava o centro dos mais altos esforços de especulação, que vão de Platão a Tomás de Aquino, o nominalismo coloca no centro a representação (ser ut nomen) resolúvel na imanência do sujeito. Descartes, considerado o pai da filosofia moderna, propõe o ponto de partida de sua reflexão filosófica em bases inteiramente imanentistas, de modo que a atenção desloca-se do ser para o sujeito cognoscente, que, possuindo um conceito unívoco de ser, é capaz de "domesticá-lo" segundo suas próprias medidas: isso é o que se percebe no ideal, inspirado na matemática, das idéias claras e distintas. Descartes, todavia, depois de lançar os fundamentos em bases idealistas, caminha em direção ao realismo ao reconhecer Deus como o fundamento sem o qual não seria possível o conhecimento.
O caminho do ser à representação atinge seu clímax em Immanuel Kant (+1804). Segundo o filósofo de Königsberg, não temos acesso à "coisa em si", de tal modo que todo nosso conhecimento é o resultado da aplicação das formas a priori do “eu penso” ao dado sensível. O conhecimento é, assim, construção do sujeito. A forma do conhecimento são as formas a priori do sujeito, e a matéria, o dado sensível. Desse modo, para Kant, a metafísica, com seus temas básicos sobre a alma, o mundo e Deus, está destituída de todo caráter científico, pois lida com as formas puras sem poder aplicá-las a qualquer dado sensível.
Ao longo desse caminho que vai do ser à representação, percebe-se a efetivação da transposição da Transcendência real para a transcendência lógica. Isto é: se antes o ser, em sua transcendência real, é que era central na filosofia, agora o sujeito, na sua imanência, é que é central. A razão deixa de ser uma inteligência espiritual e passa a ser uma instância operacional. Deixa de ser uma razão substantiva, que confere sentido e valor à realidade, e passa a ser razão instrumental, lidando apenas com os fenômenos e as relações lógicas entre eles. Usando as categorias de S. Agostinho, a ratio superior, que procura ir até o fundamento último, a algo de básico, cede lugar à ratio inferior, que apenas lida com a multiplicidade dos fenômenos.
Hegel, percebendo tal ruptura, tentou recuperar o vigor metafísico da razão, ao construir seu sistema como sistema do Espírito Absoluto, embora o tenha feito no clima da subjetividade, próprio da filosofia moderna. Depois de Hegel, entretanto, qualquer tentativa de discurso metafísico foi condenado pelo establishment filosófico ao non-sense. A metafísica foi simplesmente banida como espúria e ilegítima.
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[1]"Sic igitur theologia, sive scientia divina, est duplex. Una... est theologia quam philosophi prosequuntur quae alio nomine metaphysica dicitur; alia vero... est theologia, que in sacra Scriptura traditur" (S. Tomás, In Librum Boethii de Trinitate, q. 5, a. 4).
[2]Citando Aristóteles, Tomás de Aquino realça esta verdade: "O nosso intelecto está para as primeiras noções dos seres, que em si mesmas são evidentíssimas, como os olhos do morcego para o sol" (Summa contra gentiles I, c. III).
[3]Cf. VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica I. Loyola: São Paulo, 1991, p.239-289.
[4]Veja o que diz Tomás de Aquino, apontando Deus como a realização plena da coincidência entre inteligente e inteligível em ato: "Efetivamente, a intelecção é ato do sujeito inteligente, nele existindo, e que não se transmite a uma coisa extrínseca, como acontece com o aquecimento, o qual se transmite ao que é aquecido. Assim, o objeto da intelecção não recebe coisa alguma por ser apreendido, mas o sujeito inteligente é que é aperfeiçoado. Ora, tudo que está em Deus identifica-se com sua essência. Logo, a intelecção de Deus é a própria essência divina, o ser divino e o próprio Deus, já que Deus é sua essência e seu ser (como foi provado)"(Summa contra gentiles, I, c. XLV).
[5]Eis um texto esclarecedor de Pierre Secondi sobre a inteligibilidade das coisas: "Há muito tempo que Aristóteles justificou esta relação matéria-espírito: se a inteligência procura o espírito nas coisas mais comuns é porque ela sabe que o espírito se encontra nelas, porque tudo o que existe é a realizaão de uma idéia. Uma mesa não seria o que ele é se o carpinteiro não tivesse na cabeça a idéia de mesa, qualquer que seja a matéria utilizada. Se me permitem uma comparação belicista, a inteligência funciona como a ogiva dos novos mísseis que sabe onde está o seu alvo e como penetrar no íntimo dele. Longe de estar em oposição, matéria e espírito coincidem nas realidades. O que o filósofo chama de ordem real e ordem ideal é correlativo, segundo a fórmula um tanto solene de nossos mestres: Tudo o que existe é pensável, tudo o que é pensável pode existir; inversamente, o que é impossível nas coisas reais, um círculo quadrado por exemplo, é impossível no espírito" (SECONDI, Pierre. Philosophia perennis. Atualidade do pensamento medieval. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 24).
[6]Diz Platão a respeito do homem que se entregou a tal contemplação: "Um homem desses se desliga dos interesses humanos e dirige seu espírito para objetos divinos; a multidão o considera louco, sem perceber que nele habita a divindade... Recorda-se da beleza verdadeira, recebe asas e deseja voar para o alto; não o podendo, porém, volta seu olhar para o céu... De todos os entusiasmos este é o de mais pura origem; saudável para quem o possui e dele participa" (Fedro, 249).
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