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Ensinamento social dos Papas

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Papa Leão XIII (1878-1903)

A Igreja católica, por sua índole, tem como principal missão, decorrente do mandato mesmo de seu divino fundador, santificar as almas e fazê-las participar dos bens sobrenaturais a que são chamadas, convidando todo homem “a elevar o pensamento, das condições mutáveis da vida terrena às alturas da vida eterna, onde encontrará, sem limites, a plenitude da felicidade e da paz” (Beato João XXIII, Mater et Magistra, n.º2). 

Não obstante, a Igreja não deixa de preocupar-se com as condições de vida concernentes à ordem temporal, isto é, com aquilo que diz respeito ao progresso e problemas da civilização. Ao longo de seus dois mil anos de história, a Igreja realizou obras caritativas de assistência e de promoção social que, deve-se reconhecer, são o sinal e o testemunho certíssimo de sua solicitude pela questão social. Um marco reconhecidamente monumental dessa solicitude da Igreja é, sem dúvida, a carta encíclica do saudoso Papa Leão XIII, de bem-aventurada memória, intitulada Rerum Novarum e datada do ano de 1891. Naqueles tempos de transformações radicais, de fortes contrastes e de amargas rebeliões, Leão XIII endereçou ao mundo aquilo que poderíamos chamar de ensinamento social da Igreja; ensinamento esse fundado nos princípios evangélicos e em sólidas teses filosóficas acerca do indivíduo, da pessoa e da sociedade. 

Da publicação da Rerum Novarum para cá, os Papas têm sempre, com especial interesse, emitido orientações sobre a questão social através de cartas encíclicas. A partir das orientações dos Papas, pode-se dizer que há um corpo de Doutrina Social da Igreja. Pode-se afirmar que os princípios fundamentais do ensinamento social dos Papas são dois: 1) A afirmação da dignidade da pessoa humana com sua vocação à ordem sobrenatural, à visão de Deus face-a-face. O conceito de pessoa, já ensinava Santo Tomás (séc. XIII), diz respeito ao que há de mais perfeito na natureza: “Persona dicitur id quod est perfectissimum in tota natura”. Realizando em si o conceito de pessoa, ou seja, sendo sujeito inteligente, livre, responsável, sob o olhar de Deus, por seu destino e com plenos direitos à autorrealização natural e sobrenatural, o homem não deve nunca ser reduzido a coisa ou a meio para fins ideológicos. 2) O outro princípio é a concepção da sociedade como lugar natural de o homem atingir sua perfeição ou progredir em direção a ela. 

Em outras palavras, temos aqui a afirmação da natureza social do homem; ele só se pode realizar em sociedade. O Estado, então, em nosso caso, deve ser um facilitador da realização humana; deve respeitar o caráter pessoal do homem. O homem, por sua vez, como indivíduo, deve submeter-se ao Estado, que, por leis justas e equitativas, deve tudo ordenar em vista do bem comum. Desse modo, o Estado está subordinado ao homem como pessoa, e o homem como indivíduo, subordinado ao Estado. Tal postura mostra-se, a um só tempo, equidistante tanto do individualismo quanto do totalitarismo. E essa é, em nossa opinião, a grande via para se resolverem os grandes problemas de que padece o mundo atual. A partir dos princípios acima expostos, fica, de um lado, rejeitado o individualismo do “capitalismo selvagem” ou neoliberalismo, que, entregando a questão social à competição do livre-mercado, não é capaz senão de provocar o enriquecimento abusivo de alguns (os mais “fortes”) e o consequente empobrecimento de ampla parcela da sociedade. 

Contra tal individualismo, reclama-se a presença do Estado para evitar o paradoxo do enriquecimento de uns e empobrecimento de muitos. Fica também rejeitado o totalitarismo comunista, do qual muitas nações tiveram trágicas experiências no século passado; o totalitarismo sufoca a inteligência do homem, cerceia-lhe a liberdade, massifica-o, absorve-o no Estado, tornando-o instrumento de ideologias puramente temporais, o que fere radicalmente sua dignidade de pessoa. Contra tal instrumentalização do homem pelo Estado, reclamam-se os direitos decorrentes de sua natureza pessoal. Aqui expusemos, em linhas gerais, os princípios do ensinamento social dos Papas. O tema merece sério estudo e aprofundamento. Tais princípios precisam iluminar concretamente a vida em sociedade em sua vasta complexidade. Possa a Doutrina Social da Igreja ser mais e mais conhecida e praticada.

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