Pular para o conteúdo principal

Bontadini e a demonstração de Deus, o Ser que tira a contradição do devir


Gustavo Bontadini foi um dos grandes metafísicos italianos do século XX. No seu texto Per una teoria del fundamento (que aparece como o primeiro capítulo do livro Metafisica e deelenizzazione, Milano: Vita e Pensiero, 1995), o filósofo propõe uma demonstração da existência de Deus a partir da necessidade de rejeitar a contradição do mundo em devir. Se o mundo em devir fosse o absoluto, o ser seria contraditório. Mas como o ser não pode ser contraditório, deve haver o imutável, para além de todo devir. O mundo em devir, por sua vez, deve ser visto como posto ou criado pelo imutável, que é o Ser originário, livre de qualquer contradição. 

______

Resumo

O texto Per una teoria del fondamento elabora uma investigação sobre o conceito de fundamento dentro de uma estrutura metafísica e lógica, centrando-se no princípio de não-contradição (p.d.n.c.) e na experiência do devir. A abordagem do autor segue um percurso dialético e visa conciliar a necessidade lógica de um ser imóvel e necessário com a realidade da mudança e da contingência.

1. O Fundamento e a Remoção da Contradição

O autor inicia a discussão destacando que o fundamento é exigido pela própria necessidade de evitar contradições. Isso significa que o princípio de não-contradição não é apenas um princípio lógico, mas também um fundamento ontológico: o real deve ser incontraditório. No entanto, a experiência parece apresentar um problema: o devir—a mudança, o fluxo da realidade—parece manifestar a presença do negativo, ou seja, do não-ser.

Aqui, surge a questão fundamental: se o real deve ser incontraditório, como é possível a experiência do devir, que parece trazer consigo a negação e a contradição? Esse é o problema central do texto.

2. A Contradição do Devir

A contradição do devir pode ser formulada da seguinte forma: algo que era deixa de ser, e algo que não era passa a ser. Se aceitarmos isso de modo absoluto, teríamos que dizer que o ser e o não-ser se identificam em algum nível, o que violaria o princípio de não-contradição. No entanto, o devir é inegável, pois a experiência o atesta constantemente.

A solução proposta pelo autor não é negar a experiência do devir, mas reinterpretá-la de modo a preservá-la sem comprometer a racionalidade do ser. Para isso, é necessário um fundamento que explique a mudança sem torná-la contraditória. Esse fundamento é o princípio da criação.

3. A Criação como Fundamento

O princípio da criação aparece como a chave para resolver a tensão entre o ser e o devir. A ideia fundamental é que o devir não pode ser originário, ou seja, ele não pode existir por si mesmo, pois isso o tornaria absoluto e, consequentemente, contraditório. Se o devir fosse autônomo, significaria que o ser pode emergir do nada e retornar ao nada por si mesmo, o que seria um absurdo lógico.

A solução, então, é afirmar que o devir não é originário, mas derivado. Ele existe porque é causado por um ser necessário, imutável e absoluto, que é Deus. O devir, assim, não é uma violação do princípio de não-contradição, mas um efeito da ação criadora de um ser que está além da mudança.

Isso significa que o devir participa do ser absoluto, mas sem ser idêntico a ele. O mundo sensível, que parece estar em fluxo constante, não é irracional, porque sua existência depende do Ser necessário. Dessa forma, a criação garante a inteligibilidade do real.

4. O Fundamento na Tradição Filosófica

O autor faz um percurso histórico para mostrar que essa solução foi intuída por diferentes correntes da filosofia, mas plenamente desenvolvida apenas na tradição metafísica cristã. Ele menciona dois momentos cruciais:

1. O pensamento grego, especialmente Platão e Aristóteles, que reconheceram que o ser verdadeiro deve ser imutável, mas não conseguiram integrar plenamente a realidade do mundo sensível nessa estrutura racional.

2. A filosofia cristã, que introduz a doutrina da criação, permitindo que o mundo sensível não seja rejeitado como ilusão (como em Platão) nem separado do ser verdadeiro, mas integrado a ele por meio da sua origem no Criador.

A criação, assim, não apenas salva o mundo sensível da irracionalidade, mas também responde à exigência da razão de um ser imutável e necessário.

5. A Estrutura Dialética da Solução

O argumento do autor segue uma estrutura dialética, que pode ser resumida assim:

1. Tese: O princípio de não-contradição exige que o ser seja encontraditório.

2. Antítese: A experiência do devir parece apresentar o ser como contraditório.

3. Síntese: O devir não é absoluto, mas criado; sua realidade é garantida pelo ser absoluto.

Dessa forma, a criação reconcilia a lógica e a experiência, garantindo que o mundo sensível possa ser racional sem ser absoluto.

6. Implicações da Teoria do Fundamento

A teoria apresentada tem várias consequências filosóficas importantes:

A experiência é legítima, mas deve ser compreendida dentro de uma estrutura que garanta sua racionalidade.

O ser absoluto não é apenas lógico, mas também causa do real.

O devir não é um problema para a racionalidade, desde que seja entendido como dependente do ser necessário.

A metafísica não pode ser reduzida à lógica formal, pois ela precisa integrar a experiência e dar conta do fundamento do real.

O texto, portanto, propõe uma metafísica do fundamento que unifica razão e experiência, garantindo a inteligibilidade do mundo sem cair nem no racionalismo abstrato, nem no empirismo reducionista.

Conclusão

A “teoria do fundamento” proposta no texto visa superar a aparente contradição do devir sem sacrificar nem a exigência lógica do ser, nem a legitimidade da experiência. Isso é feito através do princípio da criação, que permite conceber o mundo sensível como real, mas não autossuficiente, garantindo sua racionalidade sem torná-lo absoluto.

Essa solução, segundo o autor, é essencial para uma compreensão coerente do real e se apresenta como um resultado definitivo da metafísica clássica, integrando a tradição aristotélica com a teologia cristã.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cinzas: na testa ou na cabeça?

Dom Jerônimo Pereira, osb       Ontem à noite recebi a ligação de um amigo com o qual partilhei que, depois de 18 anos de ordenado presbítero, por causa da minha condição de monge, presidiria o rito das cinzas, nessa quarta-feira, pela segunda vez. Imediatamente ele me lançou a pergunta: “Dom, o sinal das cinzas é colocado na fronte ou na cabeça?” De fato, uma pesquisa rápida no Google, nos mostra ambas as formas. Mas, para se evitar qualquer distorção “ideológica” ou “romântica”, pergunta-se, não ao liturgista, mas ao rito, que tem autoridade máxima em matéria, como ensina a Igreja (cf. SC 48). Um pouco, mas muito pouco, de história      O uso das cinzas para indicar penitência não é puramente cristão. Era muito usado na Antiguidade por pagãos e judeus. Na cultura bíblica ele aparece com uma multiplicidade de significados. As primeiras comunidades cristãs acolheram esse gesto como símbolo da transitoriedade da vida humana e tomaram-no indicador de um ...

“A última palavra”, de Thomas Nagel

Eis aqui um resumo do livro de Thomas Nagel — A última palavra —, publicado no Brasil pela Editora Unesp (São Paulo, 2001).  Nagel defende a objetividade de base da razão e das operações do espírito humano, contestando com bons argumentos toda tendência que queira reduzi-los ao relativismo, ao subjetivismo e ao naturalismo. A razão só pode ser criticada pela própria razão, o que mostra que ela sempre tem a última palavra. Nagel faz ver o que os bons tomistas já sabem há muito: o espírito é constituído por uma relação estrutural com o ser, a verdade e o bem em seu alcance ilimitado, de modo que toda tentativa de negar essa estrutura, pressupõe-na.    1. Introdução  O texto introdutório de A última palavra , de Thomas Nagel, discute a questão da objetividade da razão em oposição ao relativismo e subjetivismo. Nagel argumenta que a razão, se existe, deve ser universal e não depender de perspectivas individuais ou sociais. Ele defende uma posição racionalista contra a...

Inteligência artificial e monopsiquismo

O artigo ( L'Intelligence Artificielle et le monopsychisme : Michel Serres, Averroès et Thomas d'Aquin ) de Fr. David Perrin, O.P. ( leia-o aqui ) examina as semelhanças entre a Inteligência Artificial (IA) e a concepção averroísta de um intelecto único e separado, destacando a questão central: o homem ainda pensa, ou apenas acessa um conhecimento externo, como se conectando a um princípio separado? 1. A metáfora da “cabeça decapitada” e a externalização do pensamento Michel Serres, no ensaio Petite Poucette, sugere que a revolução digital transformou a relação do homem com o saber. Ele compara essa mudança à lenda de São Denis, bispo de Paris, que, após ser decapitado, teria carregado sua própria cabeça. Para Serres, a informatização do conhecimento representa uma decapitação simbólica: o pensamento humano foi deslocado da mente para dispositivos externos (computadores, IA). Esses dispositivos armazenam e processam memória, imaginação e razão de maneira amplificada, criando um...