Se pensarmos o ser com todo rigor lógico, deveremos tirar todas as consequências juntamente com o velho Parmênides: o ser é e não pode não ser, e o não-ser não é e não pode ser; disso decorre que o ser deve ser eterno (se começasse teria de vir do não-ser, mas este não pode existir); o ser deve ser imóvel (se se movesse, as determinações que são deveriam ser precedidas e seguidas pelo não-ser dessas determinações, mas o não-ser não pode existir); o ser deve ser pleno (se fosse limitado, deveria ser limitado pelo não-ser, que não pode existir). Esse ser eterno, imóvel e pleno (de agora em diante Ser, com a maiúscula) deve existir, pois resulta da exigência lógica, com consequências ontológicas. O Ser é, é eterno, é imóvel e é pleno. Só assim o não-ser, que não pode ser de forma alguma, é exorcizado.
No entanto, o que vemos – o que aparece pra nós (phainómenon) mediante os sentidos – é a temporalidade (os seres, ou ao menos certas determinações, que são seres, começam e cessam de ser), a mobilidade (os seres, ou as determinações, que são seres, se alternam e se transformam, deixam de ser e passam a ser) e a limitação do ser (os seres ou mesmo o conjunto dos seres limitados, que chamamos de universo, são delimitados pelo que não são; por maiores que sejam, não são não são a plenitude). Esse é o ser fenomênico (ou o conjunto dos seres fenomênicos). Como entender isso? Se o Ser (segundo a verdade lógico-ontológica) deve ser Ser eterno, imóvel e pleno, por que o ser fenomênico (que nos aparece mediante os sentidos) não é o Ser verdadeiro (segundo a exigência lógico-ontologica), mas parece ser “mesclado” com o não-ser, que não pode de maneira alguma existir?
Se não podemos simplesmente negar o Ser eterno, imóvel e pleno, pois se trata de uma exigência lógico-ontológica, de um lado, e, de outro lado, se também não podemos negar o ser fenomênico, que é uma evidência primeira à qual chegamos pelos sentidos, deve haver um modo de composição entre as duas ordens de ser. Eis a questão! Essa composição deve ser fiel à evidência lógico-ontológica e à evidência fenomenológica. O não-ser não pode existir, com a consequência de que o Ser, em seu sentido fundamental (de alcance ontológico), deve ser eterno, imóvel e pleno. Mas também se deve reconhecer o ser que aparece como temporal, móvel e limitado. O ser fenomênico não pode atender à exigência lógico-ontológica (verdade fundamental), mas também não se pode dizer que o ser fenomênico seja uma simples ilusão.
Essa composição entre o Ser em seu sentido e verdade fundamental (o Ser eterno, imóvel e pleno) e o ser fenomênico do qual não podemos duvidar (ser temporal, móvel e limitado) se dá pela noção de criação: o Ser eterno, imóvel e pleno põe o ser temporal, móvel e limitado. O Ser eterno, imóvel e pleno é o único originário, que existe por si, subsistente absoluto, sem relação nenhuma ou “mescla” com o não-ser, que não pode existir nem pode ter lugar algum ao lado do Ser. O Ser “preenche” tudo, pois o não-ser não pode ser. Nada há que possa restringir o Ser. Assim se respeita a verdade lógico-ontológica: o Ser é e não pode não ser; o não-ser não é e não pode ser.
No entanto, porque o ser fenomênico existe, ele deve relacionar-se com o Ser eterno, imóvel e pleno por meio de um “evento” metafísico (não imaginável nem representável com as categorias do ser fenomênico) que chamamos de criação. O ser fenomênico não pode existir de modo absoluto, originário ou primário (existência independente) porque ele não é eterno nem imóvel nem pleno. Ele, por si, não respeita a verdade fundamental segundo a exigência lógico-ontológica (o Ser deve ser eterno, imóvel e pleno). A existência do ser temporal, móvel e limitado só pode ser relativa, derivada e secundária. O ser fenomênico (e todo ser temporal, móvel e limitado) é dependente; é posto pelo Ser. O temporal é posto pelo eterno; o móvel é posto pelo imóvel; o limitado é posto pelo pleno.
A temporalidade, a mobilidade e a limitação do ser criado não se devem a um não-ser (como se o não-ser fosse algo originário com o ser e pudesse ser mesclado com ele), mas à sua condição de criaturalidade. O “não-ser” do ser temporal, móvel e limitado (porque o temporal, o móvel e o limitado implicam sempre um certo “não-ser”) não é um verdadeiro não-ser (que não pode existir), mas a consequência lógico-ontológica de o ser criatural não poder ser o Ser eterno, imóvel e pleno (só pode haver um Ser, um só Absoluto, um só Ilimitado).
A limitação não é originária, e originário não pode ser o “não-ser” do limitado. Só a Plenitude pode ser originária. O “não-ser” do ser limitado não é um verdadeiro não-ser (que não pode ser), mas o não-poder-ser-pleno do ser que é estruturalmente limitado. Esse “não-ser” é a limitação, e só pode aparecer “em contraste” com o pano de fundo (ainda que implícito para nós) do Ser pleno.
O “não-ser” só aparece sobre o fundo do Ser. O “não-ser” não é algo que subsista (o que seria absurdo), mas é o “não” do limite. Só porque o Ser cria seres limitados (ontológica e temporalmente limitados), percebemos o “não”, que não é propriamente um não-ser (um algo que existe como não-ser e ameaça o ser), mas o limite do ser limitado (criado).
E só podemos perceber o “não” do ser limitado - ou seja, o limite do limitado - porque já estamos para além do limitado, isto é, vivemos e pensamos no horizonte da pré-compreensão do Ser pleno, que Karl Rahner chamava de Vorgriff. Só percebemos o limitado como limitado porque estamos já desde sempre, pelo espírito, no horizonte do Ilimitado. O espírito no homem é homólogo ao Ser na medida em que vê o ser limitado sempre no horizonte do Ser ilimitado, ainda que esse horizonte não seja objeto de explicitação para o não filósofo.
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