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Sobre as razões da fé. De rationibus fidei ad Cantorem Antiochenum

Sobre as razões da fé, ao Cantor de Antioquia 

Autor: S. Tomás de Aquino

Tradução do latim: Elílio Júnior


Capítulo I

O plano do autor

O bem-aventurado apóstolo Pedro recebeu do Senhor a promessa de que, sobre sua confissão, seria fundada a Igreja, contra a qual as portas do inferno não podem prevalecer (cf. Mt 16,18). Para que a fé da Igreja a ele entregue permanecesse inviolada contra as portas do inferno, Pedro diz aos fiéis de Cristo: Santificai o Senhor Jesus em vossos corações” (1Pd 3,15), isto é, pela firmeza da fé, por cujo fundamento, colocado no coração, poderemos permanecer seguros contra todas as impugnações ou irrisões dos infiéis. Donde também diz em seguida: Estai sempre preparados a dar satisfação a todo aquele que vos pede a razão das coisas da vossa esperança e fé”.

Ora, a fé cristã consiste, principalmente, na confissão da Santíssima Trindade, e, especialmente, em que se glorie da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. “Pois a sabedoria da cruz, como Paulo diz, embora seja estultícia para os que se perdem, para os que se salvam, isto é, para nós, é força de Deus” (1Cor 1,18).

A nossa esperança, também, em duas coisas consiste: evidentemente naquilo que se espera depois da morte, e no auxílio de Deus, pelo qual somos ajudados nesta vida a fim de alcançar, através das obras do livre arbítrio, a futura bem-aventurança prometida.

Estas, portanto, são as coisas, como afirmas, que são impugnadas e escarnecidas pelos infiéis. Zombam os sarracenos porque, como dizes, sustentamos que Cristo é Filho de Deus, sendo que Deus não tem esposa; e julgam-nos insanos porque confessamos haver três pessoas em Deus, estimando, por isso, que professamos três deuses. Zombam ainda porque dizemos que Cristo, Filho de Deus, foi crucificado pela salvação do gênero humano: porque se Deus é onipotente, teria podido salvar o gênero humano sem a paixão de seu Filho; teria podido também constituir o homem de tal modo que ele não pudesse pecar. Censuram ainda os cristãos porque cotidianamente, no altar, manducam seu Deus e porque o Corpo de Cristo, mesmo se fosse tão grande como um monte, deveria já estar todo consumido. Em relação ao estado das almas depois da morte, afirmas que os gregos e os armênios erram, dizendo que as almas até o dia do juízo nem são punidas nem premiadas, mas estão como que em um depósito, porque nem pena nem prêmio devem ter sem o corpo. E, em conformidade com a afirmação de seu erro, alegam que o Senhor no Evangelho diz: Na casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14,2). Acerca do mérito que depende do livre-arbítrio, afirmas que tanto os sarracenos quanto outros povos atribuem necessidade aos atos humanos em virtude da presciência ou ordenação divina, dizendo que o homem não pode morrer nem pecar a não ser que Deus assim tenha ordenado a seu respeito, e que qualquer pessoa tem seu destino escrito na fronte.

Sobre isso, pedes razões morais e filosóficas que os sarracenos aceitem. Em vão, pois, seria contrapor autoridades aos que não aceitam autoridades. Querendo satisfazer, então, a tua petição, que parece proceder de um pio desejo, e para que estejas, de acordo com a doutrina apostólica, preparado a dar satisfação a todo aquele que te pede razões, expor-te-ei algumas coisas fáceis, conforme a matéria exige, sobre questões de que tratei mais amplamente alhures.


Capítulo II

Como se deve disputar com os infiéis

Quero advertir-te primeiramente sobre isto: nas disputas sobre os artigos de fé contra os infiéis, não te deves esforçar para provar a fé por meio de razões necessárias. Isso derrogaria a sublimidade da fé, cuja verdade não só excede as mentes humanas como também as dos anjos; a verdade da fé é crida por nós como revelada por Deus. Ademais, uma vez que aquilo que procede da Suma Verdade não pode ser falso, a verdade da fé não pode ser impugnada por nenhuma razão necessária; assim como a nossa fé não pode ser provada por razões necessárias, já que excede a mente humana, de igual modo, por causa de sua verdade, não pode ser refutada por nenhuma razão necessária. A isto, portanto, deve tender a intenção do disputador cristão: não prove ele a fé, mas a defenda; donde o bem-aventurado Pedro não diz: Estai preparados para provar, mas para dar satisfação, de modo que se mostre racionalmente não ser falso o que a fé católica confessa.


Capítulo III

Como a geração em Deus deve ser entendida

Primeiramente, deve-se considerar que o motivo pelo qual zombam de nós, porque dizemos que Cristo é o Filho de Deus como se Deus tivesse esposa, é irrisório. Sendo, pois, carnais, não podem pensar senão nas coisas que são da carne e do sangue. Ora, qualquer sábio pode considerar que não há um só e mesmo modo de geração em todas as coisas, mas que em cada coisa encontra-se a geração segundo a propriedade de sua natureza. Em certos animais, por exemplo, através do acasalamento do macho e da fêmea; nas plantas, pelo crescimento ou germinação, e em outras coisas, de outro modo.

Deus, porém, não é de natureza carnal para que exija uma fêmea com quem se unir a fim de gerar a prole, mas é de natureza espiritual ou intelectual, natureza intelectual esta que está acima de todo intelecto.

Deve-se, portanto, entender a geração em Deus segundo o que convém à natureza intelectual. E, por mais que nosso intelecto seja inferior ao Intelecto divino, não podemos,todavia, falar de outro modo do Intelecto divino senão segundo a semelhança das coisas que encontramos em nosso intelecto. Nosso intelecto, na verdade, ora está em potência, ora em ato. Quando intelige em ato, forma determinado inteligível, que é como que a sua prole, donde é também denominado conceito (concebido - conceptus) da mente. E o conceito, na verdade, é aquilo que é significado pela voz exterior: donde, assim como a voz significante é dita verbo exterior, de igual modo o conceito interior da mente, significado pelo verbo exterior, é dito verbo do intelecto ou da mente. Este conceito de nossa mente, porém, não é a própria essência de nossa mente, mas é certo acidente dela, visto que o nosso inteligir não é o próprio ser de nosso intelecto; de outro modo, o nosso intelecto seria o que inteligisse em ato. O verbo de nosso intelecto, portanto, pode ser dito, segundo certa semelhança, ou conceito ou filho, principalmente quando nosso intelecto intelige a si mesmo; aí, então, o verbo é certa semelhança do intelecto, e dele procede por virtude intelectual, assim como o filho tem a semelhança do pai, procedendo de sua virtude generativa. Todavia, o verbo de nosso intelecto não pode ser dito propriamente filho ou prole, visto que não é da mesma natureza de nosso intelecto. Nem tudo que procede de algo, embora lhe seja semelhante, é dito filho; se não fosse assim, a imagem de si, que alguém pinta, seria propriamente dita filha. Mas, para que algo seja filho, requer-se que não somente tenha a semelhança daquele de que procede, mas também seja da mesma natureza dele. Visto que em Deus o inteligir não é outra coisa que o seu ser, consequentemente o Verbo que é concebido em seu Intelecto não é algum acidente ou algo distinto de sua natureza; mas, enquanto é Verbo, procede de um outro, de modo que existe a semelhança com aquele de quem é Verbo. Essa semelhança se encontra em nosso verbo.

Mas o Verbo divino, além de não ser algum acidente nem alguma parte de Deus, que é simples, nem outra coisa distinta da divina natureza, é algo completo que subsiste na natureza divina, definindo-se como procedente de outro, sem o que o verbo não pode ser entendido. O que assim procede, segundo o costume da linguagem humana, é denominado filho, porque, procedendo de outro, é-lhe semelhante, subsistindo na mesma natureza com ele. Na medida em que as coisas divinas podem ser denominadas com palavras humanas, chamamos de Filho o Verbo do Intelecto divino; Deus, de quem é o Verbo, chamamos de Pai; e a processão do Verbo dizemos que é a geração do Filho imaterial, não carnal como os homens carnais supõem.

Há, porém, ainda outra coisa por que a predita geração do Filho de Deus ultrapassa toda geração humana, seja material, segundo a qual o homem nasce do homem, seja inteligível, segundo a qual um verbo é concebido na mente humana. Em ambos os casos, aquilo que procede por geração encontra-se depois no tempo daquele do qual procede. O pai, na verdade, não gera imediatamente desde o princípio de sua existência, mas é preciso que vá do estado imperfeito ao perfeito, no qual pode gerar. Nem, em segundo lugar, o ato de geração se dá de uma só vez; o filho nasce de tal modo que a geração carnal consiste em certa mutação e sucessão. Também, segundo o intelecto, o homem não está apto logo desde o princípio para formar os conceitos inteligíveis, vindo ao estado de perfeição posteriormente. Nem sempre intelige em ato, mas, de início, está somente em potência e, só depois, faz-seinteligente em ato, e, de quando em quando, deixa de inteligir em ato, permanecendo o intelecto em potência ou em hábito apenas. Assim, o verbo do homem vem depois do que o homem no tempo, e às vezes cessa de existir antes do que o homem. Mas isso é impossível convir a Deus, no qual nem imperfeição nem mutação alguma tem lugar, nem ainda qualquer passagem da potência ao ato, uma vez que Ele é o ato puro e primeiro. O Verbo de Deus é, portanto, coeterno com o próprio Deus.


Há ainda outra coisa pela qual nosso verbo difere do Verbo divino. O nosso intelecto não intelige todas as coisas simultaneamente nem por um único ato, mas por muitos, e, por isso, são muitos os verbos de nosso intelecto; Deus, porém, intelige todas as coisas simultaneamente e por um único ato, porque seu inteligir não pode ser senão um só, uma vez que é o seu ser: donde se segue que em Deus há um único Verbo.

Ademais, outras diferenças devem ser consideradas: o verbo de nosso intelecto não é proporcional à capacidade do intelecto, porque, quando concebemos algo na mente, muitas outras coisas ficam ainda por conceber; segue-se que o verbo de nosso intelecto é também imperfeito, podendo nele haver composição, como quando de muitos verbos se faz um verbo mais perfeito, como no caso em que o intelecto concebe uma enunciação ou uma definição de alguma coisa. Mas o Verbo divino é proporcional à virtude de Deus, já que Deus, por sua essência, intelige-se a si mesmo e todas as outras coisas, donde seguir-se que o Verbo que concebe por sua essência, inteligindo a si mesmo e todas as coisas, seja tão imenso quanto a sua própria essência. É perfeito, simples e igual a Deus: tal Verbo denomina-se, pela sobredita razão, Filho de Deus, que confessamos ser da mesma natureza do Pai, coeterno a ele, unigênito e perfeito.

 

Capítulo IV

Como se deve entender a processão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho

Além do mais, deve-se considerar
 que a todo conhecimento segue-se alguma operação apetitiva. De todas as operações apetitivas, o amor é o princípio. Se o amor for subtraído, não haverá gozo nem tristeza, e, consequentemente, serão também subtraídas todas as outras operações apetitivas, que, de certo modo, referem-se ao gozo e à tristeza. Existindo, pois, em Deus,perfeitíssimo conhecimento, importa que nele haja também perfeito Amor, cuja processão se exprime por operação apetitiva, ao passo que a do Verbo, por operação do intelecto.

Deve-se, contudo, considerar certas diferenças entre a operação intelectual e a apetitiva, pois a operação intelectual, e absolutamente toda operação cognitiva, completa-se pelo fato de o cognoscível existir de certo modo no cognoscente, a saber, o sensível nos sentidos e o inteligível no intelecto. Já a operação apetitiva completa-se segundo certa o
rdem ou movimento do apetente em direção às coisas lançadas ao apetiteAs coisas que têm oculto o princípio de seu movimento recebem o nome de espírito, assim como o vento é dito espírito, uma vez que o sopro não aparece. Também a respiração e o movimento das artérias, procedendo de um princípio intrínseco oculto, recebem o nome de espírito. Daí que, convenientemente, na medida em que as coisas divinas podem ser significadas por palavras humanas, o Amor divino procedente recebe o nome de Espírito.

Entretanto, em nós o amor procede de dupla causa: ora da
natureza corporal e material, e esse muitas vezes é amor imundo, já que por ele a pureza de nossa mente é contaminada; ora da propriedade natural do espírito, como quando amamos as boas coisas inteligíveis, que convêm à razão: tal amor é puro. Já em Deus não há lugar para o amor material. Convenientemente, portanto, denominamos o seu Amor não só Espírito, mas Espírito Santo, sendo que santo denota a sua pureza. É manifesto, contudo, que nada podemos amar com amor inteligível e santo a não ser aquilo que conhecemos em ato pelo intelecto. A concepção do intelecto é o verbo, donde ser necessário que o amor tenha origem do verbo. O Verbo de Deus dizemos ser o Filho, por onde fica claro que o Espírito Santo existe a partir do Filho.

Como, no entanto, o divino inteligir é o seu próprio ser, assim também o amor de Deus é o seu ser; e como Deus sempre intelige em ato, e, inteligindo-se a si mesmo, todas as coisas intelige, assim também sempre ama em ato e ama todas as coisas amando a sua própria bondade. E como o Filho de Deus, que é o seu Verbo, é subsistente na divina natureza, coeterno ao Pai, perfeito e único, assim também é preciso 
confessar estas coisas a respeito do Espírito Santo.

Dito isso, podemos considerar que, uma vez que tudo o que subsiste em natureza inteligente é dito 
pessoa (de acordo com os latinos) e hipóstase” (de acordo com os gregos), é necessário dizer que o Verbo de Deus, que denominamos Filho de Deus, é hipóstase ou pessoa; e o mesmo é preciso dizer a respeito do Espírito Santo. A ninguém cabe duvidar de que Deus, de quem o Verbo e o Amor procedem, seja também subsistente, de modo que possa ser dito hipóstase ou pessoa. Assim, convenientemente, dizemos haver em Deus três pessoas, a saber, a pessoa do Pai, a pessoa do Filho e a pessoa do Espírito Santo. Não dizemos que essas três pessoas são diversas em essência, já que, como foi dito acima, assim como o inteligir e o amar de Deus são o seu próprio ser, assim também o seu Verbo e o seu Amor são a sua própria essência.

Tudo o que se diz absolutamente de Deus outra coisa não é que sua própria essência. Deus não é ou grande ou poderoso ou bom acidentalmente, mas essencialmente; donde não dize
rmos que as três pessoas ou hipóstases são distintas em Deus por algo absoluto, mas tão somente pelas relações que provêm da processão do Verbo e do Amor. E porque chamamos a processão do Verbo de geração, da geração provêm as relações de paternidade e filiação; a pessoa do Filho distingue-se da pessoa do Pai somente pela paternidade e filiação: todas as outras coisas são predicadas comum e indiferentemente de ambos. Assim como afirmamos que o Pai é verdadeiro Deus, onipotente, eterno e outras coisas semelhantes, assim também é o Filho, e o mesmo deve-se afirmar a respeito do Espírito Santo. Já que o Pai e o Filho e o Espírito Santo não se distinguem na natureza da divindade a não ser tão somente pelas relações, convenientemente não afirmamos que as três pessoas são três deuses, mas professamos existir um só verdadeiro e perfeito Deus.

Nos homens, porém, três pessoas são ditas três homens, não um só homem, porque a natureza da humanidade, que é comum aos três, diferentemente lhes convém segundo a divisão material, que em Deus absolutamente não existe. Segue-se daí que
, existindo em três homens três humanidades diferentes em número, só uma essência da humanidade se encontra neles. Entretanto, nas três pessoas divinas não existem três divindades diferentes em número, mas é necessário que haja uma única e simples divindade, já que a essência do Verbo e do Amor não é outra que a essência de Deus; e, assim, confessamos, não três deuses, mas um único Deus, por causa da única e simples divindade em três pessoas.

 

Capítulo V

Qual foi a causa da encarnação do Filho de Deus

Em razão de uma semelhante cegueira de espírito, escarnecem a fé cristã por confessar que Cristo, Filho de Deus, morreu, não entendendo a profundidade de tão grande mistério. E para que a morte do Filho de Deus não seja perversamente entendida, é preciso, antes, dizer algo sobre a sua encarnação. Não dizemos que o Filho de Deus esteve sujeito à morte segundo a natureza divina, pela qual é igual ao Pai, fonte de toda vida, mas segundo a nossa natureza, que ele assumiu na unidade da pessoa.

Para considerar, pois, o mistério da divina encarnação, é preciso advertir que tudo o que age pela inteligência opera pela concepção do seu intelecto, concepção essa que chamamos verbo, como é claro a respeito do construtor e de qualquer artífice, que opera exteriormente segundo a forma que concebe na sua mente. Sendo o Filho de Deus o próprio Verbo de Deus, é consequente que Deus tudo fizesse através do Filho.

Qualquer coisa é feita e reparada pela mesma razão: se, portanto, uma casa for danificada, será reparada pela mesma forma de arte através da qual foi construída. Entre as criaturas feitas por Deus através de seu Verbo, a criatura racional ocupa o principal lugar, sendo que todas as demais servem-na e lhe parecem estar ordenadas; issoestá conforme à razão, pois que somente a criatura racional tem domínio de seu ato pela liberdade de arbítrio. As outras criaturas, na verdade, não agem a partir do livre juízo, mas são levadas a agir por uma espécie de força da natureza. Quem é livre está acima do servo, e os servos são ordenados ao serviço dos livres e pelos livres são governados.

A falta da criatura racional, desse modo, segundo uma avaliação verdadeira, deve ser mais considerada do que o defeito de qualquer criatura irracional. Ora, não se deve duvidar de Deus julgue as coisas conforme uma avaliação justa. É conveniente, portanto, que a sabedoria divina repare principalmente a falta da criatura racional, e isso mais do que se os céus fossem abalados ou outra coisa pudesse acontecer nos entes corpóreos.

Há, contudo, dois tipos de criatura racional ou intelectual: uma separada do corpo, denominada anjo; outra unida ao corpo, que é a alma humana. Em ambas pôde dar-se a falta devido à liberdade de arbítrio. Digo falta, não como deficiência do ser, mas como deficiência da retidão da vontade. A falta, ou defeito, é considerada principalmente em relação àquilo através do qual uma coisa opera, como quando dizemos que o artífice erra se houver deficiência naquilo através do qual ele deve operar; também dizemos que uma coisa natural será deficiente e danificada se a virtude pela qual age estiver corrompida, como quando há deficiência no poder de germinação da planta ou no poder de frutificação da terra. Aquilo através do qual a criatura racional opera é a vontade, na qual está a liberdade de arbítrio. Portanto, a falta da criatura racional está relacionada à deficiência da retidão da vontade, o que se dá pelo pecado.

Remover o defeito do pecado, que não é senão a perversidade da vontade, convém principalmente a Deus, e isso através de seu Verbo, pelo qual fez o universo das criaturas. Para o pecado dos anjos não há remédio, uma vez que, de acordo com a imutabilidade de sua natureza, não são passíveis de penitência em relação àquilo em que uma vez se convertem. Os homens, todavia, segundo a condição de sua natureza, têm a vontade mutável, de modo que não somente podem escolher o bem ou o mal, mas também, depois de escolhido um, podem arrepender-se e voltar-se ao outro; e essa mutabilidade da vontade do homem permanece tanto tempo quanto estiver submetido à variação do corpo. Quando, porém, a alma estiver separada do corpo, terá a mesma imutabilidade da vontade que, naturalmente, tem o anjo; donde a alma humana não ser passível de penitência após a morte, não podendo converter-se do bem ao mal ou do mal ao bem.

Assim, coube à bondade de Deus reparar por seu Filho a natureza humana corrompida. O modo da reparação devia ser tal que conviesse à natureza a ser reparada e à desordem. À natureza a ser reparada, porque, sendo o homem de natureza racional e ordenado pelo livre-arbítrio, devia ser reconduzido ao estado de retidão, não por coação externa, mas pela própria vontade. À desordem também,porque, consistindo ela na perversidade da vontade, foi preciso que a reparação fosse feita por algo que reduzisse a vontade à retidão. A retidão da vontade humana consiste na ordenação do amor, que é a principal afeição. O amor é ordenado quando amamos, como Sumo Bem, a Deus sobre todas as coisas e referimos-lhe, como ao fim último, tudo o que amamos, e, ainda, quando, para que a justa ordem seja preservada, preferimos as coisas espirituais às temporais.

Nada pode ser mais eficaz para provocar nosso amor a Deus do que o fato de o Verbo de Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas, ter assumido nossa própria natureza, de modo a ser Deus e homem, para nossa reparação. Primeiro, porque isso demonstra maximamente quanto Deus, que quis fazer-se homem para a salvação do homem, ama o homem. Nada mais provoca tanto o amor do que o fato de alguém saber-se amado. Depois, porque, tendo o homem o intelecto e o afeto voltado para as coisas corporais, não teria podido elevar-se facilmente ao que está acima de si. É fácil a qualquer homem conhecer e amar outro homem, mas considerar a altitude divina e a ela se dirigir pelo reto afeto do amor não é próprio de qualquer homem, mas daqueles que, pelo auxílio divino, com grande empenho e labor, se elevam das coisas corporais às espirituais. Portanto, para que a todos os homens se mostrasse fácil o caminho que conduz a Deus, quis Deus fazer-se homem, para que também os pequenos (os menos dotados) pudessem pensar em Deus e amá-lo como semelhante, e, assim, por aquilo que podem apreender, pouco a pouco fossem levados ao que é perfeito. 

Ademais, pelo fato de que Deus se fez homem, é dada ao homem a esperança de participar da perfeita bem-aventurança, que só Deus possui naturalmente. O homem, conhecendo sua enfermidade, mal poderia esperar pela posse da bem-aventurança, de que com dificuldade os anjos são capazes e que consiste na visão e fruição de Deus, se tal posse lhe fosse apenas prometida, a não ser que, de outra parte, lhe fosse mostrada a dignidade da natureza humana, tão estimada por Deus a ponto de ele querer fazer-se homem pela salvação do homem. E, assim, pelo fato de Deus ter-se feito homem, foi dada ao homem a esperança de unir-se a Deus por beata fruição. O conhecimento de sua dignidade, que foi possível pelo fato de Deus ter assumido a dignidade humana, é também importante ao homem para que ele não submeta seu afeto a alguma criatura, cultuando pela idolatria os demônios ou quaisquer criaturas, nem se submeta às criaturas corporais por afeto desordenado. É indigno do homem, que possui tão grande dignidade e está tão próximo de Deus a ponto de Deus ter querido fazer-se homem, submeter-se desordenadamente a coisas inferiores a Deus.

 

Capítulo VI

Como se deve entender a afirmação de que Deus se fez homem


Quando afirmamos que Deus se fez homem, ninguém pense que isso queira dizer que Deus se tenha convertido em homem, assim como o ar se faz fogo quando em fogo se converte. Ora, a natureza de Deus é imutável. Os corpos é que se convertem um no outro. A natureza espiritual não se converte em natureza corpórea, mas se lhe pode unir de algum modo pela eficácia de seu poder, como a alma se une ao corpo. Embora a natureza humana conste de alma e corpo, a alma, contudo, não é de natureza corpórea, mas espiritual.

Ora, toda criatura espiritual dista da simplicidade divina muito mais do que dista a criatura corporal da natureza espiritual. Assim como a natureza espiritual une-se à corporal pela eficácia de seu poder,
 de modo semelhante Deus pode unir-se tanto à natureza espiritual quanto à corporal, e desse modo afirmamos que Deus uniu-se à natureza humana.

Deve-se observar que
 uma coisa parece ser aquilo que nela se encontra de principalTodas as outras coisas parecem aderir ao que é principal, e, de certo modo, ser assumidaspor ele, na medida em que o principal se vale delassegundo sua disposição, o que é manifesto em uma comunidade civil, em que os maiorais parecem constituir toda a cidade e se valem dos outros segundo sua disposição, na qualidade de membros seus. Tal se dá também na união natural. Embora o homem conste naturalmente de alma e corpo, ele parece ser principalmente alma, à qual o corpo está unido; desse corpo a alma se vale para as operações convenientes. Assim, na união de Deus à criatura, a natureza divina não é subtraída pela natureza humana, mas, antes, a natureza humana é assumida por Deus, não de modo que se converta em Deus, mas que a ele se una (adhaereat), e a alma e o corpo, desse modo assumidos, sejam, de certo modo, a alma e o corpo do próprio Deus, assim como as partes do corpo assumidas pela alma são, de certo modo, membros da própria alma.

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Há nisso, porém, uma diferença a ser notada. Embora a alma seja mais perfeita do que o corpo, não possui em si mesma toda a perfeição da natureza humana; donde o corpo sobrevir a ela para que da alma e do corpo se complete uma só natureza humana, da qual a alma e o corpo são certas partes. Deus, ao contrário, é tão perfeito em sua natureza que nada pode ser acrescentado à sua plenitude; donde não poder a natureza divina unir-se a algo de modo a formar, a partir dessa união, uma natureza comum, pois, assim, a natureza divina seria parte daquela natureza comum. Ora, isso repugna à perfeição da divina natureza, já que toda parte é imperfeita. Deus, isto é, o Verbo de Deus assumiu a natureza humana composta de alma e de corpo de modo que não houvesse a transformação de uma natureza em outra nem fusão de duas naturezas em uma só, mas de maneira que, depois da união, permanecessem as duas naturezas distintas quanto às suas propriedades. É preciso considerar ainda que, uma vez que a natureza espiritual se une à natureza corpórea pelo poder espiritual, tanto mais perfeita e firmemente a natureza espiritual assumirá a que lhe é inferior quanto maior for o seu poder. Ora, o poder (virtus) de Deus é infinito, e toda criatura lhe é submissa, ele que dispõe de cada qual conforme lhe apraz, o que não seria possível a não ser que, de algum modo, estivesse unido à criatura pela eficácia de seu poder. E tanto mais perfeitamente está unido a uma natureza criada quanto mais exerce sobre ela o seu poder. Deus, na verdade, exerce seu poder sobre todas as criaturas, comunicando-lhes o ser e o movimento para que realizem suas operações próprias; por isso, dizemos que ele está em todas as coisas de algum modo. Mas de modo especial está na mentes santas, não somente conservando-lhes o ser e dando-lhes o movimento para operar, como acontece com todas as criaturas, mas também convertendo-as para o conhecimento e o amor de Deus. Daí dizermos que Deus habita especialmente nas mentes santas, e que estas estão cheias de Deus.

Assim, uma vez que se diz que Deus está mais ou menos unido às criaturas em proporção 
à quantidade de poder que ele exerce sobre elas, é manifesto que, não podendo o intelecto humano compreender a eficácia do poder divino, Deus pode muito bem unir-se à criatura de um modo superior ao que o intelecto humano possa captar. É, então, segundo um modo incompreensível e admirável que dizemos que Deus se uniu à natureza humana em Cristo, não só por inhabitação como nos santos, mas de um modo singular, de tal maneira que a natureza humana fosse, de algum modo, a natureza do Filho de Deus, e o Filho de Deus, que desde toda a eternidade possui a natureza divina do Pai, tivesse uma natureza humana do nosso gênero, assumida admiravelmente no tempo. Assim, quaisquer partes da natureza humana podem ser ditas do próprio Filho de Deus, e o que faz ou sofre qualquer parte da natureza humana pode ser atribuído ao unigênito Verbo de Deus. Donde dizermos, não inconvenientemente, que a alma e o corpo são do Filho de Deus, e também os olhos e as mãos; e, nesse sentido, dizemos que o Filho de Deus viu com os olhos do corpo (corporaliter) e ouviu com os ouvidos corpóreos, e assim a respeito de outras partes da alma ou do corpo

 

A respeito desta admirável união, nenhum exemplo mais conveniente pode ser encontrado do que a união do corpo e da alma racional. Constitui-lhe também um exemplo conveniente a palavra que se mantém oculta no coração, que se faz sensível pela voz e pela escrita. Todavia, esses exemplos são muito deficientes, como, aliás, todos os exemplos humanos que tentam representar as coisas divinas. Pois a divindade não realiza a união de modo que se torne parte de uma natureza composta, como a alma é parte da natureza humana; nem se une à natureza humana de modo que seja significada por ela, como a palavra do coração é significada pela voz ou pela escrita. Ao contrário, a união se dá de modo que o Filho de Deus tenha verdadeiramente uma natureza humana, e seja dito homem. Fica, pois, claro que não dizemos que Deus se uniu à natureza corpórea como uma potência (virtus) no corpo ao modo das potências materiais e corporais. Nem o intelecto é uma potência desse gênero para a alma unida ao corpo. Muito menos o Verbo de Deus, que, de modo inefável e mais sublime, assumiu a natureza humana.

 

Desse modo, fica patente, a partir do que já dissemos, que o Filho de Deus possui tanto a natureza divina como a humana, uma desde toda a eternidade, a outra, assumida no tempo. Acontece, porém, que muitas coisas são possuídas por um mesmo ser segundo modos diversos, entre os quais, o principal é dito possuir e o menos principal, ser possuído. O todo, portanto, possui muitas partes, como o homem, as mãos e os pés; não dizemos o contrário, isto é, que as mãos ou os pés possuam o homem. Um sujeito, pois, possui muitos acidentes, como o fruto possui cor e odor, e não o contrário. O homem também tem posses ou roupas, e não o contrário. Somente naquelas coisas que são partes de uma só realidade, algo é dito possuir e ser possuído, como a alma possui o corpo e o corpo, a alma. E, na medida em que marido e mulher se tornam uma só coisa pela aliança matrimonial, diz-se que o marido possui a esposa e a esposa, o marido. Issoacontece semelhantemente em outras coisas que se unem por relação, como quando dizemos que o pai tem o filho, e o filho tem o pai.

 

Se, portanto, Deus se unisse à natureza humana como a alma ao corpo, de modo que daí se constituísse uma única natureza comum, poder-se-ia dizer que Deus possui a natureza humana e a natureza humana o possui, como a alma possui o corpo e vice-versa. Mas, uma vez que, por causa da perfeição da natureza divina, como já se disse,não se pode constituir uma única natureza a partir da união da natureza divina e da humana, o principal, no quadro da predita união, cabe à parte de Deus, donde se segue que é necessário que, da parte de Deus, seja recebido aquilo que possui a natureza humana. Aquilo, porém, que possui alguma natureza, é dito supósito ou hipóstase daquela natureza; como aquilo que tem a natureza de cavalo é ditohypóstase ou supósito; e se a natureza é intelectual, hipóstase é chamada pessoa; assim, dizemos que Pedro é pessoa porque tem a natureza humana, que é natureza intelectual. Uma vez, portanto, que o Filho de Deus, a saber, o Verbo unigênito de Deus, possui a natureza humana assumida, como já se disse, segue-se que seja supósito, hipóstase ou pessoa da natureza humana; e como possui desde a eternidade a natureza divina, não por composição, mas por simples identidade, é dito também hipóstase ou pessoa da natureza divina, na medida em que as coisas divinas poder ser expressas por palavras humanas. O mesmo Verbo unigênito de Deus, portanto,  é hipóstase ou pessoa das duas naturezas, a saber, da divina e da humana, ele que subsiste em duas naturezas.

 

Se, porém, alguém objeta que em Cristo a natureza humana não é acidente, mas certa substância, não universal, mas particular, e que, por isso, é denominada hipóstase, parece seguir que a natureza humana em Cristo seja uma certa hipóstase, para além da hipóstase do Verbo de Deus, e, assim, que haja em Cristo duas hipóstases. Quem assim objeta deve considerar que nem toda substância particular é denominada hipóstase, mas somente aquela que não é possuída por alguém mais importante. A mão do homem é certa substância particular, mas nem por isso pode ser dita hipóstase ou pessoa, porque é possuída por um mais importante, que é o homem; de outro modo,  em qualquer homem haveria tantas hipóstases ou pessoas quantos membros ou partes. A natureza humana em Cristo não é acidente, mas substância, não universal, mas particular; nem por isso pode ser dita hipóstase, porque é assumida por um mais importante (a principaliori), a saber, o Verbo de Deus. Assim, pois, Cristo é uno por causa da unidade da pessoa ou hipóstase; não se pode dizer propriamente que Cristo é dois, mas se diz com propriedade que Cristo possui duas naturezas.

 

E ainda que a natureza divina se predique da hipóstase de Cristo, que é a hipóstase do Verbo de Deus, que é a sua essência, a natureza humana, por sua vez, não pode se predicar dele em abstrato, como não pode de ninguém que a possui. Assim como não podemos dizer que Pedro seja a natureza humana, mas dizemos que é homem enquanto possui a natureza humana, de igual modo não podemos dizer que o Verbo de Deus seja a natureza humana, mas, sim, que possui a natureza humana assumida, e por isso é dito homem.

 

Ambas as naturezas se predicam do Verbo de Deus, mas uma somente em concreto, a saber, a humana, como quando dizemos que o Filho de Deus é homem. A natureza divina, por sua vez, se predica em abstrato e em concreto; assim, pode-se dizer que o Verbo de Deus é a divina essência ou natureza e que é Deus. Como Deus possui a natureza divina, e o homem, a natureza humana; por estes dois nomes (Deus e homem) são significadas duas naturezas possuídas, mas um só é quem possui a ambas.Uma vez que quem possui a natureza é a hipóstasepelo nome “Deus” entendemos a hipóstase do Verbo de Deus, e, pelo nome “homem”, a hipóstase do Verbo de Deus na medida em que é atribuída a Cristo. E assim fica claro que pelo fato de dizermos que Cristo é Deus e homem, não dizemos que são dois, mas um só em duas naturezas. Na verdade, aquilo que convém a uma natureza, pode ser atribuído à hipóstase daquela natureza. A hipóstase, tanto da natureza humana quanto da divina, está incluída tanto no nome que significa a natureza divina como no nome que significa a natureza humana, já que a mesma hipóstasepossui ambas as naturezas. Segue-se que tanto a natureza divina quanto a humana se prediquem daquela hipóstase, ou porque esta está incluída no nome que significa a natureza divina ou porque está no nome que significa a natureza humana. Podemos, então, dizer que Deus é o Verbo de Deus concebido e nascido da Virgem, que padeceu, morreu e foi sepultado, atribuindo, assim, coisas humanas ao Verbo de Deus por causa da natureza humana. E, vice-versa, podemos dizer que aquele homem é um só com o Pai, que existe desde a eternidade e que criou o mundo; isso por causa da natureza divina.

 

Nas diversas coisas que se atribuem a Cristo, encontra-se uma distinção, se se considera relativamente (secundum quid) o que de Cristo se diz: certas coisas são ditas segundo a natureza humana, outras, segundo a natureza divina. Se se considera de quem são ditas essas coisas, são proferidas indistintamente, porque a hipóstase a respeito da qual se dizem as coisas divinas e humanas é a mesma. Seria como se dissesse que é o mesmo o homem que vê e que ouve, mas não secundo a mesma razão: vê com os olhos, e ouve com os ouvidos. O mesmo acontece com o fruto que é visto e cheirado, mas isto pelo odor, aquilo pela cor. Por esta razão, podemos dizer que o vidente ouve, o ouvinte vê e o que é visto é cheirado e o que é cheirado é visto. Semelhantemente, podemos dizer que Deus nasce da Virgem, por causa da natureza humana. E que aquele homem é eterno, por causa da natureza divina.

 

 

Capítulo VII

 

Como se deve entender a afirmação de que o Verbo de Deus padeceu e morreu e de que disso não resulta nenhum inconveniente

 

A partir das considerações acima, já aparece suficientemente que nada de inconveniente se segue de que confessemos que Deus, o Verbo unigênito de Deus, padeceu e morreu. Não lhe atribuímos essas coisas secundo a natureza divina, mas segundo a humana, que foi assumida na unidade da pessoa para a nossa salvação. Se alguém, porém, objeta que Deus, sendo onipotente, teria podido salvar o gênero humano de outro modo que não pela morte de seu Filho unigênito, deve ter presente esse alguém que, nas obras feitas por Deus, é preciso considerar o que convenientemente se fez, mesmo que Deus o pudesse fazer de outro modo; do contrário, semelhante raciocínio tornaria inválidas todas as obras de Deus.

 

Se se considerasse porque Deus fez o céu com tal dimensão e porque estabeleceu um tal número de estrelas, ocorreria ao que pensa com sabedoria que assim convenientemente se fez, mesmo que Deus pudesse ter feito de outro modo. Digo isso porque acreditamos que toda a disposição da natureza e dos atos humanos está sujeita à Providência divina. Sem essa fé, todo culto prestado à divindade  fica desprovido de sentido. Ora, sustentamos esta presente discussão com aqueles que se dizem adoradores de Deus, sejam eles cristãos, sarracenos ou judeus. Com aqueles, porém, que dizem que todas as coisas provieram necessariamente (ex necessitate) de Deus, com mais empenho se deve discutir noutro lugar. Se alguém, pois, considerar, com pia intenção, a conveniência da paixão e da morte de Cristo, encontrará tal profundidade de sabedoria que lhe ocorrerá sempre mais e maiores riquezas, de modo que possa experimentar a verdade do que o apóstolo diz: “Nós pregamos o Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; para nós, porém, força e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24); e ainda: “A loucura de Deus é mais sábia do que os homens” (1Cor 1,25). 

 

Deve-se considerar, antes do mais, que, tendo Cristo assumido a natureza humana para reparar a queda do homem, como já dissemos acima, por esse motivo convinha que ele sofresse e agisse segundo a natureza humana, e, assim, pudesse oferecer remédio contra o erro do pecado. O pecado do homem consiste principalmente em ele se apegar aos bens corporais e menosprezar os espirituais. Conveio, pois, que o Filho de Deus, por aquilo que fez e sofreu na natureza humana assumida,  mostrasse isso aos homens, de modo que eles tivessem por nada os bens e os males temporais e, apegados que são aos bens materiais por causa do afeto desordenado, não se dedicassem menos aos bens espirituais. Por isso, Cristo escolheu pais pobres, ainda que perfeitos em virtude, para que ninguém se glorie por causa da nobreza de sangue ouda riqueza da família. Levou vida pobre, para assim ensinar a desprezar as riquezas. Viveu mesmo privado de qualquer dignidade, para afastar os homens do desejo desordenado das honras. Suportou o labor, a fome, a sede e os flagelos do corpo, para que os homens, que são inclinados para os prazeres e delícias, não se afastassem do bem da virtude por causa das asperezas desta vida. Por fim, suportou a morte, para que ninguém, por medo dela, abandone a verdade. E para que ninguém temesse uma morte vergonhosa por causa da verdade, escolheu o mais ignominioso gênero de morte, a saber, a morte de cruz. Assim, foi conveniente que o Filho de Deus feito homem sofresse a morte, para que, por seu exemplo, provocasse os homens à virtude, e, desse modo, verdadeiro se tornasse o que Pedro diz: “Cristo sofreu por nós, deixando-vos um exemplo a fim de que sigais os seus vestígios” (1Pd 2,21). 

 

Em seguida, uma vez que para a salvação é necessária aos homens não só uma maneira reta de viver, pela qual os pecados sejam evitados, mas também o conhecimento da verdade, pelo qual se evitem os erros, foi necessário, para a reparação do gênero humano, que o Verbo unigênito de Deus, que assumiu a natureza humana, firmasse os homens num certo conhecimento da verdade. À verdade que é ensinada por um homem não se presta absolutamente fé firme, pois o homem pode enganar-se e enganar. O conhecimento da verdade é confirmado unicamente por Deus, sem que haja espaço para dúvida.Assim, foi conveniente que o Filho de Deus feito homem propusesse aos homens a doutrina da verdade divina, e mostrasse que ela é divinamente transmitida, não humanamente, o que, na verdade, se fez pela multidão de milagres. No tocante ao que sobre Deus ensinava, era necessário que se acreditasse naquele que fazia coisas que só Deus pode fazer, isto é, ressuscitar os mortos, curar os cegos, etc. Aquele que por Deus operava, também por Deus falava. Os que lhe eram contemporâneos puderam ver seus milagres, mas os pósteros talvez pudessem achar que fossem inventados. A divina sabedoria, entretanto, apontou um remédio para resolver esse impasse através da fraqueza de Cristo. Se Cristo tivesse sido rico, poderoso e dotado de uma grande dignidade, poder-se-ia crer que sua doutrina e seus milagres tivessem sido aceitos por causa do favor dos homens ou do poder humano. Por isso, para que a obra do divino poder se fizesse manifesta, escolheu tudo o que é abjeto e fraco no mundo - mãe pobre, vida de privação, discípulos e mensageiros ignorantes, sofreu reprovação e condenação ao ponto de ser morto pelos grandes do mundo - para que ficasse claro que a aceitação dos seus milagres e da sua doutrina não se deveu ao poder humano, mas ao divino. 

 

Por isso, nas coisas que fez ou padeceu, conjugavam-se simultaneamente a fraqueza humana e o poder divino. Em seu nascimento, é envolvido com panos e reclinado num presépio, mas também Anjos cantam seu louvor e Magos, conduzidos por uma estrela, o adoram. É tentado pelo Diabo, mas também servido por Anjos. Vive como pobre e mendigo, mas ressuscita mortos e cura cegos. Morre pregado na cruz e rodeado de ladrões, mas, por ocasião de sua morte, o sol perde o brilho, a terra treme, as lápides se partem, os túmulos se abrem e os corpos dos mortos tornam à vida. Se alguém, pois, vendo os grandes frutos desses primórdios, como a conversão de quase todo o mundo a Cristo, e ainda assim quisesse outros sinais para crer, poder-se-ia considerá-lo mais duro que a pedra, já que, por ocasião da morte de Cristo, até as pedras se partiram. Por essa razão, o Apóstolo diz aos Coríntios: “A palavra da cruz para os que se perdem é loucura, mas para os que se salvam, isto é, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,18).

 

, ainda, sobre o assunto, outra coisa a considerar: pela mesma razão da Providência, o Filho de Deus feito homem não só quis padecer em si mesmo das fraquezas humanas, mas também quis que seus discípulos, que ele estabeleceu como ministros da salvação humana, fossem desprezados no mundo, razão pela qual não escolheu literatos ou nobres, mas iletrados e homens de humilde condição, pobres, pescadores, e, enviando-os a procurar a salvação dos homens, ordenou que conservassem a pobreza, sofressem as perseguições e os opróbios e até mesmo a própria morte por causa da verdade; tudo isso para que a pregação deles não parecesse favorecida por algum benefício terrestre e para que a salvação do mundo não ficasse vinculada à sabedoria ou ao poder do homem, mas só de Deus. Desse modo, não lhes faltou o poder divino de operar maravilhas, eles que, segundo o mundo, pareciam desprezíveis. Ora, era necessário para a reparação humana que os homens aprendessem a confiar, não soberbamente em si mesmos, mas em Deus. Requer-se para a perfeição da justiça humana que o homem se submeta totalmente a Deus, de quem deve esperar os bens a alcançar e reconhecer os já alcançados. Sobre os bens deste mundo que devem ser desprezados e as adversidades que devem ser toleradas até a morte, os discípulos não puderam melhor ser instruídos do que pela paixão e morte de Cristo; por isso, o próprio Cristo disse-lhes no Evangelho de João: “Se me perseguiram a mim, também vos perseguirão” (Jo 15,20).

 

Por fim, deve-se considerar que a obra da justiça exige que a pena seja infligida em reparação do pecado. Nos julgamentos humanos, consta que as coisas feitas injustamente sejam reconduzidas à justiça, como quando o juiz tira o que passa daquele que, recebendo coisas alheias, acaba tendo mais do que deveria, e o dá àquele que tem menos. Ora, quem peca, concede à sua vontade mais do que deveria conceder, e, para satisfazê-la, transgride a ordem da razão e a lei divina. Para cumprir a justiça, é preciso que seja tirado da vontade aquilo que ela quer, o que se faz quando se pune, seja pela subtração dos bens que deseja possuir, seja pela aplicação dos males que recusa padecer.  Essa reparação da justiça pela aplicação da pena, às vezes se faz pela vontade daquele que é punido, quando ele mesmo assume a pena para cumprir a justiça; às vezes, contudo, se faz constrangendo-o, e então ele mesmo não cumpre a justiça, mas a justiça é cumprida nele. 

 

Ora, todo o gênero humano estava submetido ao pecado. Para se justificar, era preciso que o homem assumisse a pena, a fim de realizar a ordem da justiça divina. Acontece, porém, que nenhum simples homem tinha condições suficientes para satisfazer a Deus, assumindo voluntariamente alguma pena, nem mesmo por seus próprios pecados, e muito menos pelo pecado de todo o mundo. Na verdade, quando o homem peca, transgride a lei divina e faz injúria a Deus, cuja majestade é infinita. Tanto maior é a injúria quanto maior é aquele contra quem ela é feita: assim, é manifesto que a injúria é maior quandoalguém fere um militar do que quando alguém fere um camponês; e então será ainda maior se se tratar de um rei ou príncipe. Ora, o pecado cometido contra a lei de Deus constitui, de certa maneira, uma injúria infinita.

 

Deve-se considerar, além disso, que a satisfação é também medida pela dignidade de quem a realiza. Pois uma só palavra proferida por um rei em reparação de alguma injúria tem mais valor de satisfação do que se outra pessoaqualquer dobrasse o joelho, andasse nu ou se submetesse a qualquer outro ato de humilhação a fim de satisfazer ao que foi injuriado. Ora, não havia nenhum simples homem que portasse uma dignidade infinita, cuja satisfação pudesse estar à altura de reparar a injúria feita a Deus. Foi preciso, pois, que houvesse um homem de dignidade infinita que sofresse a pena no lugar de todos, e assim satisfizesse condignamente pelos pecados de todo o mundo. Para isso, o unigênito Verbo de Deus, verdadeiro Deus e Filho de Deus, assumiu a natureza humana e nela quis padecer a morte, para que, satisfazendo, purificasse todo o gênero humano. Assim, Pedro diz: “Cristo morreu uma só vez por nossos pecados, o justo pelos injustos, para nos oferecer a Deus” (1Pd 3,18). 

 

Não foi conveniente, como opinam, que Deus purificasse os pecados sem satisfação humana, nem que não permitisse ao homem cair no pecado. O primeiro repugnaria à ordem da justiça; o segundo, à ordem da natureza humana, pela qual o homem é livre, podendo escolher o bem ou o mal. É próprio da Providência não destruir a ordem das coisas, mas conservá-la. Nisto se mostrou com a máxima intensidade a sabedoria divina, porque conservou tanto a ordem da justiça como a da natureza, e, não obstante, proporcionou ao homem, com grande misericórdia, o remédio pela encarnação e morte de seu Filho.

 

 

Capítulo VIII

 

Como se deve compreender que os fiéis comam o Corpo de Cristo e que disso não resulta nenhum inconveniente

 

Uma vez que pela paixão e morte de Cristo os homens são purificados do pecado, para que a memória desse tão grande benefício em nós permanecesse, o Filho de Deus, aproximando-se o seu sofrimento, deixou aos seus discípulos o dever de perpetuar a memória de sua paixão e morte. Fez isso ao entregar aos discípulos o seu corpo e sangue sob as espécies do pão e do vinho. E até hoje a Igreja de Cristo o celebra por toda a parte em memória daquela venerável paixão. O quão vã é a irrisão dos infiéiscontra esse sacramento, qualquer um pode facilmente entender, mesmo que seja pouco instruído na Religião cristã. Não dizemos que o corpo de Cristo é dilacerado em partes, de modo que, dividido, os fiéis o consumam sob osacramentoe um dia ele venha a faltar, mesmo que seja tão grande como um monte, como dizem. Dizemos, antes,que é o pão que se converte no Corpo de Cristo, e o Corpo de Cristo está no sacramento da Igreja e, assim, é pelos fiéis manducado. Pelo fato de o Corpo de Cristo não ser dividido, uma vez que é algo que se converte nele, não há necessidade de que os fiéis, em o manducando, diminuam a sua quantidade.

 

Se algum infiel quiser dizer que essa conversão é impossível, considere, se acredita na onipotência de Deus, que uma coisa, no que diz respeito à forma, pode se converter em outra pelo poder da natureza, como o ar que se converte em fogo, de modo que a matéria que antes estava sujeita à forma do ar se submeta, em seguida, à forma do fogo. Com muito maior razão, o poder sem limites de Deus, que produz toda a substância da coisa no ser, não só mudando-lhe a forma, como faz a natureza, poderá mudar inteiramente isto naquilo, de modo que o pão se converta no corpo de Cristo e o vinho, no sangue.Se alguém, porém, encontrar dificuldades em aceitar essa conversão porque nenhuma mudança é constatada pelos sentidos no sacramento do altar, considere que as coisas divinas nos são propostas de tal modo que cheguem a nós sob o véu das coisas visíveis. Para que o corpo e o sangue de Cristo sejam nossa refeição espiritual e divina, semelhante em tudo a um alimento e bebida comuns, eles não nos são apresentados sob a espécie da própria carne e sangue, mas sob a espécie do pão e do vinho, e isso a fim de que seja afastado o horror de comer carne humana e beber sangue humano. 

 

Não dizemos, contudo, que isso se faz de modo que as espécies que se mostram aos sentidos no sacramento do altar estejam só na imaginação de quem as vê, como costuma acontecer nas ilusões das artes mágicas, pois nenhuma ficção combina com a verdade do sacramento. Com efeito, Deus, que é o criador da substância e do acidente, pode conservar os acidentes sensíveis e mudar as substâncias em outra coisa. Pode, por sua onipotência, produzir e conservar no ser os efeitos das causas segundas sem o concurso delas. Não pretendemos nesta obra disputar contra quem não acredita na onipotência de Deus, mas contra os Sarracenos e outros que acreditam na onipotência de Deus. Outros mistérios deste sacramento não devem ser aqui discutidos mais amplamente, porque os segredos da fé não devem ser descobertos aos infiéis.

 

 

Capítulo IX

 

Há um lugar especial onde as almas são purificadas antes de irem ao Paraíso

 

Agora resta considerar a opinião daqueles que dizem que não há Purgatório após a morte. Alguns chegaram a essa posição porque lhes aconteceu o que parece ocorrer com muitos sobre variados assuntos. Quando quiseram evitar erros de modo despreparado, acabaram caindo em erros contrários. Assim, Ário, quando quis evitar o erro de Sabélio que confundia as pessoas da Trindade, caiu no erro contrário que dividia a essência da divindade. De modo semelhante, Êutiques, quando quis debelar o erro de Nestório que separava em Cristo a pessoa de Deus e a pessoa do homem, acabou apresentando o erro contrário de sustentar que havia uma só natureza de Deus e do homem. Também alguns, quando quiseram evitar o erro de Orígenes que ensinava que todas as penas póstumas são purgatórias, acabaram sustentando o erro de dizer que não há nenhuma pena purgatória depois da morte. A Igreja católica, santa e apostólica, diversamente, avança com cautela sobre a via do justo meio. Ela distingue as pessoas na Trindade contra Sabélio e, contudonão cai no erro de Ário, mas confessa uma só essência de três pessoas. No mistério da encarnação, ao contrário, distingue as naturezas contra Êutiques e não separa a pessoa como Nestório. Assim, quanto ao estado das almas depois da morte, reconhece certas penas purgatórias, mas somente para aqueles deixam este mundo sem pecado mortal, com a caridade e a graça; não professa, com Orígenes, que todas as penas são purgatórias, mas ensina que aqueles que partem com pecado mortal devem sofrer o suplício eterno com o Diabo e seus anjos. 

 

Para a afirmação dessa verdade, parece que se deve considerar por primeiro que aqueles que partem com pecado mortal vão imediatamente para os suplícios infernais, o que se prova claramente pela autoridade do Evangelho. Assim, em Lucas, o Senhor diz que rico epulão morreu e desceu ao inferno (Lc 16,22), e o rico mesmo aparece confessando o seu suplício: sofro muito nessa chama (Lc 16,24). No livro de Jó se diz sobre os ímpios: “Levam os seus dias em meio a bonanças e, de repente, descem aos infernos, eles que chegaram a dizer a Deus: afasta-te de nós, não queremos a sabedoria de teus caminhos” (Jó 21, 13-14). Não somente os ímpios, por causa dos próprios pecados, mas também os justos que viveram antes da paixão de Cristo desciam aos infernos por causa do pecado do primeiro pai. Daí porque Jacó dizia: “Descerei chorando para junto de meu filho no inferno” (Gn 37,35). Por isso, também Cristo, ao morrer, desceu aos infernos, como consta no Símbolo da fé, conforme havia sido predito antes pelo profeta: “Não deixarás minha alma no inferno” (Sl 15,10). Pedro explicaeste ponto referente a Cristo nos Atos. É verdade, entretanto, que Cristo desceu aos infernos de outro modo, não como manchado pelo pecado, mas como o único livre entre os mortos, e desceu para, vencendo os principados e as potestades, prender a própria prisão, conforme fora predito por Zacarias: “Tu, pelo sangue da tua aliança, hás libertado do abismo sem água os que estavam cativos” (Zc 9,11). 

 

Entretanto, já que a misericórdia de Deus paira sobre todas as suas obras, muito mais se deve crer que aqueles que morrem sem mácula recebem imediatamente o preço da eterna retribuição. E isso se prova através de autoridades evidentes. Diz o Apóstolo na 2ª Carta aos Coríntios, quando faz menção das tribulações dos santos: “Sabemos, diz, que se nossa habitação terrestre se desfizer, temos no céu uma construção da parte de Deus, uma casa não feita por mãos de homem, mas eterna” (2Cor 5,1). Dessas palavras, parece que se pode deduzir, a partir de uma primeira leitura, que, desfeito o corpo mortal, o homem se reveste da glória celeste. Mas, para que esse sentido se faça mais evidente, prestemos atenção no que se segue.

 

Como havia proposto duas coisas, isto é, a dissolução da habitação terrena e a aquisição de uma casa celeste, o Apóstolo trata de mostrar como o desejo do homem se relaciona com uma e com outra, fazendo de ambas uma exposição. Daí porque, primeiramente, fala a respeito do desejo da morada celeste, e diz que gememospor causada demora, e que almejamos ser revestidos da habitação celeste, o que dá a entender que aquela casa celeste, de que se falou acima, não é algo separado do homem, mas algo que lhe é inerente. Evidentemente, não se diz que o homem se veste de uma casa, mas de roupa; diz-se, ao contrário, que alguém habita numa casa. Como, pois, une as duas coisas, dizendo “revestir-se da habitaçãoo Apóstolo mostra que o objeto de nosso desejo é algo aderente, porque se o veste, e também algo continente e excedente, porque nele se habita. O que, na verdade, é o objeto de nosso desejo ficará claro na sequência. 

 

Uma vez que o Apóstolo não havia dito simplesmentevestir-se, mas revestir-se, expõe a razão de sua expressão, ajuntando: se nos encontramos, todavia, vestidos e não nus, como que dizendo: se a alma se veste da habitação celeste sem se despir da habitação terrena, a aquisição da habitação celeste deve ser considerada um revestir-se. Mas porque é preciso que se dispa da habitação terrena para se vestir da celeste, não se pode dizer revestição, mas simples vestição. 

 

Poderia, pois, alguém perguntar ao Apóstolo: Por que disseste desejosos de revestir-se? Ao que respondePois também nós que estamos nesta tenda, isto é, que vestimos uma tenda terrena, como qualquer coisa de transitório, e não uma mansão, como algo de permanente, gememos como que contrariados por algo que se coloca contra o nosso desejo, porque, segundo nosso desejo natural, não queremos ser espoliados da tenda terrena, mas revestidos da morada celeste, a fim que que o mortal seja absorvido pela vida, isto é, o mortal passe para a vida eterna sem experimentar o gosto da morte. 

 

Poderia mais uma vez alguém dizer ao Apóstolo: Parece razoável que não queiramos ser espoliados da habitação terrestre, que nos é conatural, mas de onde nos vem que desejemos vestir-nos da habitação celeste? A isso responde: Aquele que nos fez nesse estado, isto é, de desejarmos as coisas do céu, é Deus. E como nos fez assim, mostra ao acrescentar: Ele que nos deu o penhor do Espírito. Pelo Espírito Santo, que de Deus recebemos, estamos certos de receber a habitação celeste, assim como pelo penhor, de recuperar o débito. Dessa certeza nos elevamos ao desejo da habitação celeste. 

 

Assim, há em nós dois desejos: um, da natureza, de não deixar a habitação terrestre; outro, da graça, de conseguir a habitação celeste. Mas esses dois desejos não podem ser satisfeitos ao mesmo tempo, porque não podemos atingir a habitação celeste sem deixar a terrestre. Daí porque preferimos, com firme confiança e audácia, o desejo da graça ao desejo da natureza; queremos deixar a habitação terrestre e nos encaminhar para a celeste. Isso o Apóstolo diz: “Cheios de segurança sempre, também sabemos que,enquanto estamos neste corpo, andamos longe do Senhor; andamos pela fé, não pela visão. Estamos cheios de confiança e desejamos afastar-nos do corpo e estar juntos do Senhor”. Por isso, fica claro porque chamou o próprio corpo corruptível de morada terrestre da nossa habitação, e de tenda; pois o corpo é uma espécie de vestimenta da alma. Fica claro também o que havia dito “casa não feita por mãos humanas, mas eterna nos céus”: trata-se dopróprio Deus de quem os homens se vestem, ou no qual habitam, enquanto lhe estão presentes pela visão, vendo-o como ele é. Peregrinam, ao contrário, longe dele, quando têm pela fé o que ainda não veem. 

 

Os santos, pois, desejam estar longe do corpo, isto é, almejam que suas almas se separem do corpo pela morte, a fim de que, longe do corpo, estejam juntos do Senhor. É manifesto que as almas dos santos, desligadas dos respectivos corpos, chegam à habitação celeste e veem a Deus. A glória das santas almas, que consiste na visão de Deus, não se retarda até o dia do juízo, quando reassumem os corpos; é o que aparece pelo dizer do apóstolo aos filipenses: “Tenho o desejo de ser separado [da carne] para estar com Cristo” (Fl 1,23). Vão seria esse desejo, se, uma vez separado do corpo, Paulo não estivesse com Cristo. É fato estabelecido, todavia, que ele está nos céus. Portanto, estão com Cristo nos céus as almas dos santos depois da morte. Claramente também o Senhor disse ao ladrão que reconhecia seus crimes na cruz: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43), designando por “Paraíso” a fruição da glória. Por isso não se deve crer que Cristo retarde a remunerar os seus fiéis quanto à glória da alma até a reapropriação dos corpos. A palavra do Senhor “Na casa de meu Pai há muitas moradas” refere-se aos diferentes tipos de recompensa com as quais os santos são remunerados por Deus na felicidade celeste, não, porém, fora da casa, mas na própria casa. 

 

Vistas essas coisas, conclui-se que parece existir um Purgatório das almas depois da morte. É possível haurirclaramente de muitas autoridades da Sagrada Escritura que ninguém pode chegar com mácula à glória celeste. Diz-seque a participação da divina sabedoria, no livro da Sabedoria, é “uma certa emanação límpida da claridade de Deus onipotente, e nada de manchado pode insinuar-se nela” (Sb 7,25). A felicidade celeste consiste, com efeito, na participação perfeita da sabedoria, pela qual veremos a Deus face a face. É preciso, pois, que os que são conduzidos àquela felicidade estejam absolutamente sem mácula. A mesma coisa é dita em Isaías com mais clareza: “chamar-se-á via santa; o sujo não passará por ela”; e no Apocalipse: “nela não entrará algo manchado” (Ap 21,27). 

 

Acontece, porém, que alguns, na hora da morte,encontram-se sujos com algumas manchas de pecados, pelas quais, contudo, não merecem a condenação do Inferno; são pecados veniais, como palavras vazias ou coisas semelhantes. Esses que morrem sujos por essas manchasnão podem entrar imediatamente na felicidade celeste; poderiam entrar, como foi provado, se não houvesse mácula neles. Depois da morte, sofrerão ao menos uma retardação da glória por causa dos pecados veniais. Não há, porém, nenhuma razão pela qual se possa dizer que as almas sofram mais esta pena do que aquela; a ausência da visão divina e a separação de Deus é pena maior, também para os que estão no Inferno, do que o suplício do fogo. As almas dos que partem com pecados veniais sofrem o fogo purificador depois da morte.Alguém poderá dizer que os pecados veniais devem aindaser purgados pelo fogo da conflagração do mundo, que precederá a aparição da face do Juiz. Mas isso não se sustenta em virtude do que já foi dito. 

 

Mostrou-se, portanto, que as almas dos santos, nas quais não há mácula, uma vez desfeito o corpo, conseguem imediatamente a habitação celesteMas não se pode dizer que as almas dos que partem com pecados veniaischeguem à glória celeste antes que deles sejam purificadas, como foi mostrado. A glória delas é retardadaaté o dia do juízo? Parece absolutamente improvável que, por causa de pecados leves, alguém sofra tamanha pena. 

 

Ademais, acontece que alguns, antes da morte, não conseguem cumprir plenamente a penitência devida aos pecados dos quais se arrependeram; não convém à justiça divina que não puna aquela pena. Se não, os que são levados cedo pela morte estariam em melhor condição do que os que fazem prolongada penitência pelos pecados nesta vida. Sofrem, portanto, uma pena, não, porém, no Inferno, no qual os homens são punidos por causa dos pecados mortais, uma vez que pela penitência os pecados mortais já foram perdoados. Nem seria conveniente, para a remissão dessa pena, que a glória que lhes é devida se retardasse até o dia do juízo. É preciso, pois, admitir a existência de certas penas temporais e purgatórias depois desta vida e antes do juízo. 

 

Com isso concorda o rito da Igreja introduzido pelos apóstolos. Ora, a Igreja reza pelos fiéis defuntos. É claro que não reza pelos que estão no Inferno, porque no Inferno não há redenção; nem por aqueles que já estão na glória celeste, porque eles já atingiram o seu fim. Resta, pois, dizer que há certas penas temporais e purgatórias depois desta vida, por cuja remissão a Igreja reza.

 

Por isso o Apóstolo diz aos Coríntios: “o fogo provará a qualidade da obra de cada um. Se a obra permanecer, quem a edificou receberá o prêmio; se a obra queimar-se,sofrerá o prejuízo; entretanto, ele mesmo será salvo como que pelo fogo” (1Cor  3,13-15). Não se pode, porém, entendê-lo como se se tratasse do fogo do Inferno, porque aqueles que o sofrem não se salvam. É, pois, preciso que se o entenda a respeito de algum fogo purificador. É verdade que alguém pode dizer que se o deve entende a respeito do fogo que precederá a face do Juiz, principalmente porque está dito: “o dia do Senhor declarará, porque será revelado no fogo”. Ora, o dia do Senhor é entendido como o dia da sua vinda derradeira, como afirma o Apóstolo na 1ª Carta aos Tessalonicenses: “o dia do Senhor virá como um ladrão de noite” (1Ts 5,2). Mas se deve ter presente que, assim como o dia do juízo é dito dia do Senhor, porque é o dia de sua vinda para o juízo universal de todo o mundo, assim também o dia da morte de cada qual é dito dia do Senhor, porque na morte Cristo vem a cada um para recompensar ou condenar. Por isso, no que tange à recompensa dos bens, o Senhor diz em João aos seus discípulos: “s eu for embora preparar-vos um lugar, virei uma segunda vez e receber-vos-ei junto de mim, para que onde eu esteja, estejais também vós” (Jo 14,3). Quanto à condenação dos males, diz em Apocalipse: “faze penitência e retoma a primeira obra; se não, virei a ti e mudarei de lugar teu candelabro” (Ap 2,5). O dia do Senhor, portanto, no qual se dará o juízo universal, será revelado no fogo que precederá a face do Juiz. Nesse dia os réprobos serão levados ao suplício eterno, e os justos, que forem achados vivos, serão purificados. Mas também o dia do Senhor, no qual ele julga cada um na morte, será revelado no fogo, que purifica os bons e condena os ímpios. Assim, fica claro que existe o Purgatório depois da morte.

 

 

Capítulo X

 

A predestinação divina não impõe necessidade aos atos humanos e como se deve proceder nesta questão

 

Agora, resta considerar por último se pela preordenação ou predestinação divina se impõe necessidade aos atos humanos. Nessa questão deve-se proceder de tal modo com cautela que a verdade seja defendida e o erro da falsidade, evitado. É errôneo dizer que os atos e os acontecimentos humanos não estejam submetidos à presciência e à ordenação divina. Mas não é menos errôneo dizer que, em virtude da presciência e daordenação divina, se impõe necessidade aos atos humanos. Isso suprimiria a liberdade de arbítrio, a oportunidade de deliberar, a utilidade das leis, a solicitude de bem agir, e a justiça dos castigos e das recompensas. 

 

Deve-se, portanto, considerar que Deus tem a ciência das coisas de outra maneira, diferente do homem. O homem está sujeito ao tempo e, por isso, conhece as coisas temporalmente, vendo certas coisas como presentes, outras como passadas e outras ainda como futuras. Mas Deus transcende o curso do tempo, e o seu ser é eterno. Daí porque seu conhecimento não é temporal, mas eterno. 

 

A eternidade é comparada ao tempo como o indivisível, ao contínuo. No tempo, pois, se encontra certa diversidade das partes secundo um antes e um depois que se sucedem, como na linha se encontram diversas partes que se ordenam entre si segundo a localização. Mas a eternidade não tem um antes e um depois, uma vez que as coisas eternas carecem de mutação. E, assim, a eternidade é toda simultânea, como o ponto que carece de partes segundo localizações distintas. 

 

O ponto pode comparar-se à linha de dois modos. De um modo, como compreendido no interior da linha, esteja ele no início da linha, no meio ou no fim. De outro modo, como existindo fora da linha. O ponto que existe dentro da linha não pode estar presente a todas as partes da linha, mas, ao contrário, é preciso assinalar diversos pontos nas diversas partes da linha. Já o ponto que está fora da linha, nada lhe proíbe que olhe para todas as partes da linha igualmente, como fica claro no círculo, cujo centro, sendo indivisível, olha igualmente para todas as partes da circunferência, e todas lhe são de algum modo presentes, embora uma não esteja presente à outra. 

 

instante, que é o término do tempo, assemelha-se ao ponto incluso na linha. O instante não está presente a todas as partes do tempo, mas nas diversas partes do tempo são assinalados instantes diversos. Já a eternidade assemelha-se, de alguma maneira, ao ponto que está fora da linha, ou seja, ao centro. Sendo simples e indivisível, a eternidade compreende todo o curso do tempo, e qualquer parte do tempo lhe está igualmente presente, ainda que uma se siga à outra

 

Assim, Deus, que tudo olha desde a eternidade, vê sempre, como sendo presentes, todo o curso do tempo e todas as coisas que acontecem no tempo. Quando eu vejo Sócrates sentar-se, é infalível e certo o meu conhecimento, e nem por isso a necessidade de se sentar é imposta a Sócrates. Assim também Deus conhece infalível e certamente, como lhe sendo pressentes, todas as coisas que nos são passadas, presentes ou futuras, e nem por isso é imposta a necessidade de existir aos contingentes. Pode-se ilustrar isso se compararmos o curso do tempo ao trânsito de uma estrada. Se alguém estiver numa estrada pela qual muitos passam, verá aqueles que lhe precedem; não pode conhecer ao certo, no entanto, aqueles que vêm depois. Mas se alguém estiver num lugar alto, donde possa ver toda a estrada, verá, simultaneamente, a todos os que passam pela estrada. Assim, o homem que está no tempo não pode ver simultaneamente todo o curso do tempo, mas verá somente aquilo que está diante de si, a saber, as coisas presentes e algumas passadas; mas aquelas que ainda devem vir, não pode conhecer ao certo. Deus, entretanto, do alto de sua eternidade, pode ver com certeza, como lhe sendo presentes, todas as coisas que são feitas durante todo o curso do tempo, sem que isso imponha necessidade às coisas contingentes.

 

Como a ciência divina não impõe necessidade às coisas contingentes, também não o faz a sua ordenação, pela qual, providamente, dispõe o universo. Deus ordena as coisas como as realiza: o que dispõe pela sabedoria, executa pelo poder, sem que sua ordenação seja contrariada. Quanto à ação do divino poder, é preciso considerar que age em todas as coisas e move a cada uma para seus atos conforme o modo de cada qual; assim certas coisas, sob a moção divina, realizam suas ações por necessidade, como fica claro no movimento dos corpos celestes; a árvore, com efeito, de vez em quando, é impedida de frutificar, e o animal, de gerar. Assim, pois, a sabedoria divina ordena as coisas a fim de que a ordem se dê de acordo com o modo das próprias causas. Ora, é natural ao homem agir livremente, não coagido por alguma necessidade, porque as faculdades racionais consideram objetos opostos. Deus, portanto, ordena os atos humanos, de modo que não estejam submetidos à necessidade, mas provenham da liberdade de arbítrio. 

 

Eis o que, no presente, pareceu-me dever escrever sobre as questões propostas, questões que foram tratadas de maneira mais completa em outro lugar.

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