Assim, a imagem de Deus que temos hoje não é exatamente a mesma que tinham os primeiros hebreus henoteístas ou os primeiros judeus monoteístas. Para os cristãos, Jesus, embora falasse a partir de sua cultura judaica, renovou a imagem de Deus, acentuando a gratuidade e a misericórdia divina, que não eram desconhecidas, e a centralidade do coração na relação com ele, superando o entendimento legalista da Lei, o ritualismo e a religiosidade meramente exterior, que os profetas já combatiam. A partir de Jesus, que é de direito a referência fundamental do cristianismo, o pensamento e a cultura dos cristãos, se procuram manter-se dentro de um quadro formal comum cujas linhas estão no Novo Testamento e na Tradição da Igreja, mostram percepções variadas da imagem de Deus, desenvolvendo a herança do Mestre de Nazaré, mas, às vezes, apresentando tendências para acentuações de imagens pré-cristãs do divino.
Hoje a teologia bíblica e dogmática procuram realçar o caráter misterioso do Ser divino, em contraste com uma certa tendência moderna ocidental de querer dizer muitas coisas sobre Deus. Karl Rahner, no século XX, fala do Mistério santo. Ressalte-se que o mistério não é algo incognoscível ou proibido de ser conhecido, mas algo que, ultrapassando-nos, convida-nos a conhecer cada vez mais a sua riqueza inexaurível. Já Tomás de Aquino, no século XIII, dizia que de Deus mais ignoramos do que sabemos, embora saibamos da sua existência certa, que é a existência do Absoluto que funda o relativo. Bem antes, Agostinho dizia que, se compreendemos, o que compreendemos não é Deus. Deus está muito acima das intencionalidades modais de nossos conceitos, mas sabemos que ele é a Plenitude. Na busca de entender o divino, tomamos consciência da nossa historicidade, inclusive da historicidade dos próprios meios pelos quais a revelação constitutiva se deu, como as Escrituras Sagradas
Acentua-se também hoje o caráter de gratuidade originária da divindade. A imagem de um Juiz severo cede espaço para a de um Pai misericordioso. Jesus já havia acentuado a misericórdia e a gratuidade do Pai. Antes de Jesus, já se conhecia entre os judeus esse atributo de Deus. Mas nem sempre se assimilou até às últimas consequências o fato de Deus ser gratuidade pura. Isso não significa que não devamos cuidar de ouvir esse Pai e seguir suas veredas com atenção e responsabilidade, pois o “castigo” é criado por nós todas as vezes que nos afastamos do Bem. De sua parte, Deus está constantemente querendo nossa conversão e nos espera sempre de braços abertos para um novo começo.
A imagem de Deus que vai se afirmando hoje também inclui o caráter dinâmico do Universo e da vida e a autonomia do criado, que as ciências modernas realçam. Não temos mais uma visão estática das coisas nem sobrenaturalista (como se o criado precisasse de intervenções constantes extraordinárias de um outro mundo). A criação e a salvação são um processo que requer desenvolvimento, com todos os percalços do caminho. A nossa confiança é que Deus conduz, de forma transcendental, essa dinâmica, sabendo tirar de seus males bens ainda maiores. Deus é visto como o criador e fiador do processo e da dinamicidade de sua obra, seu Alfa e seu Ômega. A autonomia dos processos naturais e humanos nos falam da consistência própria do criado. Este não opera segundo leis que estão fora. Isso nos ensina que devemos indagar e ouvir também as leis próprias das coisas terrestres e criadas para captar ou discernir a vontade de Deus. Isso funda a nossa responsabilidade com o criado e a história. Embora não estejam excluídas irrupções da ação transcendental de Deus em pontos determinados do criado, de ordinário o criado opera por si, em seus diversos planos: o natural como natural e o livre como livre. A ação transcendental de Deus sustenta a autonomia da criação, não a destrói, cuidando, contudo, de direcionar o processo para o Ômega da salvação.
O nosso compromisso com o criado em seu processo dinâmico (compromisso com as realidades naturais, históricas e sociais) é realçado pela nova imagem de Deus, mas isso não desmonta a mística; antes, exige-a. Deus não se esgota no processo (não professamos o panteísmo processual), mas é o Ser que faz ser o processo, e isso com a colaboração da nossa liberdade. Ao Ser podemos aderir com a inteligência e o afeto em uma união verdadeiramente mística. Essa união oferece uma qualidade extraordinariamente nova ao nosso modo de ser, de pensar e agir.
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