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A imagem de Deus está mudando?



Eu diria que não temos acesso direto ao Ser divino. Ele se mostra conforme nossa capacidade de percepção, de investigar (no caso da filosofia) ou de receber (no caso da teologia). Cada cultura ou cada pessoa faz, então, uma “imagem” de Deus. Uso aqui o termo imagem em sentido amplo. Abarca as representações imagéticas ainda não muito conscientes de seu caráter metafórico, as metáforas conscientes de si mesmas, até os conceitos refinados da filosofia e teologia. Estas pretendem alcançar ou expressar algo de estável e eterno sobre a imagem de Deus pelo alto grau de abstração e formalidade que alcançam, mas mesmo assim trazem alguma marca da história e da cultura.
 
Assim, a imagem de Deus que temos hoje não é exatamente a mesma que tinham os primeiros hebreus henoteístas ou os primeiros judeus monoteístas. Para os cristãos, Jesus, embora falasse a partir de sua cultura judaica, renovou a imagem de Deus, acentuando a gratuidade e a misericórdia divina, que não eram desconhecidas, e a centralidade do coração na relação com ele, superando o entendimento legalista da Lei, o ritualismo e a religiosidade meramente exterior, que os profetas já combatiam. A partir de Jesus, que é de direito a referência fundamental do cristianismo, o pensamento e a cultura dos cristãos, se procuram manter-se dentro de um quadro formal comum cujas linhas estão no Novo Testamento e na Tradição da Igreja, mostram percepções variadas da imagem de Deus, desenvolvendo a herança do Mestre de Nazaré, mas, às vezes, apresentando tendências para acentuações de imagens pré-cristãs do divino.
 
Hoje a teologia bíblica e dogmática procuram realçar o caráter misterioso do Ser divino, em contraste com uma certa tendência moderna ocidental de querer dizer muitas coisas sobre Deus. Karl Rahner, no século XX, fala do Mistério santo. Ressalte-se que o mistério não é algo incognoscível ou proibido de ser conhecido, mas algo que, ultrapassando-nos, convida-nos a conhecer cada vez mais a sua riqueza inexaurível. Já Tomás de Aquino, no século XIII, dizia que de Deus mais ignoramos do que sabemos, embora saibamos da sua existência certa, que é a existência do Absoluto que funda o relativo. Bem antes, Agostinho dizia que, se compreendemos, o que compreendemos não é Deus. Deus está muito acima das intencionalidades modais de nossos conceitos, mas sabemos que ele é a Plenitude. Na busca de entender o divino, tomamos consciência da nossa historicidade, inclusive da historicidade dos próprios meios pelos quais a revelação constitutiva se deu, como as Escrituras Sagradas

Acentua-se também hoje o caráter de gratuidade originária da divindade. A imagem de um Juiz severo cede espaço para a de um Pai misericordioso. Jesus já havia acentuado a misericórdia e a gratuidade do Pai. Antes de Jesus, já se conhecia entre os judeus esse atributo de Deus. Mas nem sempre se assimilou até às últimas consequências o fato de Deus ser gratuidade pura. Isso não significa que não devamos cuidar de ouvir esse Pai e seguir suas veredas com atenção e responsabilidade, pois o “castigo” é criado por nós todas as vezes que nos afastamos do Bem. De sua parte, Deus está constantemente querendo nossa conversão e nos espera sempre de braços abertos para um novo começo. 

A imagem de Deus que vai se afirmando hoje também inclui o caráter dinâmico do Universo e da vida e a autonomia do criado, que as ciências modernas realçam. Não temos mais uma visão estática das coisas nem sobrenaturalista (como se o criado precisasse de intervenções constantes extraordinárias de um outro mundo). A criação e a salvação são um processo que requer desenvolvimento, com todos os percalços do caminho. A nossa confiança é que Deus conduz, de forma transcendental, essa dinâmica, sabendo tirar de seus males bens ainda maiores. Deus é visto como o criador e fiador do processo e da dinamicidade de sua obra, seu Alfa e seu Ômega. A autonomia dos processos naturais e humanos nos falam da consistência própria do criado. Este não opera segundo leis que estão fora. Isso nos ensina que devemos indagar e ouvir também as leis próprias das coisas terrestres e criadas para captar ou discernir a vontade de Deus. Isso funda a nossa responsabilidade com o criado e a história. Embora não estejam excluídas irrupções da ação transcendental de Deus em pontos determinados do criado, de ordinário o criado opera por si, em seus diversos planos: o natural como natural e o livre como livre. A ação transcendental de Deus sustenta a autonomia da criação, não a destrói, cuidando, contudo, de direcionar o processo para o Ômega da salvação.

O nosso compromisso com o criado em seu processo dinâmico (compromisso com as realidades naturais, históricas e sociais) é realçado pela nova imagem de Deus, mas isso não desmonta a mística; antes, exige-a. Deus não se esgota no processo (não professamos o panteísmo processual), mas é o Ser que faz ser o processo, e isso com a colaboração da nossa liberdade. Ao Ser podemos aderir com a inteligência e o afeto em uma união verdadeiramente mística. Essa união oferece uma qualidade extraordinariamente nova ao nosso modo de ser, de pensar e agir. 

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