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Que mediação para o discurso teológico?



A teologia cristã, que encontrou sua expressão cientificamente elaborada no século XIII, construiu-se com o aparato conceitual da filosofia grega. Mas, se isso foi possível, foi porque a filosofia grega tinha já um caráter teológico.
 
O neoplatonismo, herdeiro das grandes ideias de Platão, concebe o todo do ser como um movimento necessário que descende do Princípio e a ele retorna. Se o Princípio é divino, divino também é o mundo, que Platão chamava de “Deus visível”, já que espelha o reflexo do Princípio.
 
O aristotelismo concebe o mundo como um conjunto harmonioso de substâncias movidas pela atração da Substância mais nobre e divina — o Primeiro Motor Imóvel. Não se concebe o cosmo sem referência última a esse divino Motor que sustenta os ciclos eternos das revoluções celestes e da geração e corrupção do mundo sublunar.
 
O estoicismo, embora não admitisse um Princípio transcendente ao próprio cosmo, no entanto reconhecia que este é regido por um Lógos — não pelo acaso — ou por uma Lei que lhe é interior. Aqui o mundo com seu Lógos se apresenta propriamente como o “Deus visível” de que falava Platão.
 
De início o cristianismo apoiou-se em seu discurso teológico no neoplatonismo, que ressaltava a transcendência do Princípio e sua espiritualidade, e também viu os conceitos estoicos de Lei Natural e de Providência como veículos de expressão do conteúdo da verdade revelada. A partir do século XIII, o aristotelismo tornou-se, depois de ser depurado em alguns aspectos pela obra de S. Tomás, um instrumental apto para pensar e expressar o conteúdo da fé cristã. 

Ora, esse casamento entre cristianismo e filosofia grega só foi possível porque o pensamento grego oferecia ao discurso teológico cristão uma mediação objetiva determinada teologicamente. Em outras palavras, para falar de Deus, a teologia cristã precisa apoiar-se numa instância objetiva, a não ser que queira enclausurar-se na subjetividade e acabe por enfraquecer-se como discurso objetivo ou científico sobre Deus; essa instância objetiva é o mundo (tal como era pensado pela razão filosófica), que, por fazer referência ao Princípio (neoplatonismo), ao Primeiro Motor Imóvel (aristotelismo) ou ao Lógos (estoicismo), é uma grandeza, em última análise, teológica. Nenhuma dificuldade estrutural há em construir uma teologia cristã dentro de uma compreensão racional de mundo de caráter teológico.
 
O grande problema surge quando a grandeza teológica do mundo se perde pelo advento de uma das maiores revoluções da história do homo sapiens: a Revolução Científica (século XVII). O mundo deixa de ser transparência do divino para tornar-se o mundo frio regido por leis mecânicas conhecidas pelo saber hipotético do homem. O mundo, de grandeza a ser contemplada como era considerado, torna-se o campo do saber construído e da atividade operativa do homem. O mundo como grandeza teológica era acolhido pelo homem como maravilhosa expressão do divino. O mundo como campo de leis indiferentes torna-se o lugar da ausência de Deus. É nesse horizonte que se entende o apavoramento de um Pascal por causa do “silêncio destes espaços infinitos” e a sua retração para a subjetividade da fé a partir do papel decisivo da aposta.
 
Desde a Revolução Científica, o grande desafio da fé cristã está em conseguir uma mediação objetiva para poder fazer a sua teologia e expressar o seu conteúdo. Como pode um mundo da ausência de Deus servir de mediação para um discurso sobre Deus? Foi com base neste impasse que muitos teólogos quiseram fazer teologia a partir de um mundo sem Deus (as “teologias da morte de Deus” dos anos 60). Outros quiseram tomar a história, a esperança ou a realidade social como mediação. Mas o problema de fundo permanece: ou a teologia alcança uma mediação objetiva para seu discurso ou ela acaba por enfraquecer-se como teologia (discurso científico sobre Deus). A mediação histórica, das realidades sociais ou da esperança deverão, para vencer o desafio, encontrar um solo objetivo teológico (reconhecível pela razão). Mas esse parece não ser ainda o caso, pois a metodologia da ciência moderna, essencialmente a-teia (pois exclui de princípio a hipótese Deus e procede pela explicação do natural pelo natural segundo o modelo matemático), tende a dominar o universo dos saberes, mesmo o das ciências humanas, nas quais algumas teologias pretendem apoiar-se, tirando-lhes qualquer aceno para um campo que poderia ser reconhecido como teológico. 

É de notar que Karl Rahner, bebendo do tomismo transcendental, pretendeu encontrar a mediação objetiva para a teologia na própria subjetividade humana, vendo aí mais do que a mera subjetividade, isto é, um dinamismo orientado finalisticamente para a afirmação objetiva do Absoluto. Do seu ponto de vista, o espírito humano só é possível como tal (isto é, como espírito ou abertura ao Ser) porque nele atua o próprio Ser como terminus a quo e terminus ad quem do seu dinamismo. Mas o horizonte aberto pelo tomismo transcendental de Rahner, se excetuarmos certos guetos cada vez menos expressivos na atualidade, ainda não foi bem assimilado pela teologia, que pende para um discurso algo fideísta, sentimental ou poético. Seria a perspectiva do tomismo transcendental uma válida saída para a questão da necessária mediação objetiva da teologia? 

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