Pular para o conteúdo principal

Deus é o próprio Ser

"Ele é sem dúvida substância ou, se for melhor esta designação, essência, a que os gregos chamam ousía. [...] Com efeito, o que muda não conserva o próprio ser, e o que pode mudar, ainda que não mude, pode não ser o que fora e, por isso, só aquilo que não muda, mas também não pode mudar de maneira nenhuma, é o que se pode dizer, com toda verdade, ser" (S. Agostinho, De Trinitate, IV-3.4).

______
Nesse texto, Agostinho diz que, propriamente falando, só Deus merece o nome "substância", "essência", em suma, "ser". A razão disso é que Deus é estável, não muda. Ele não deixa de ser, é sempre o que é. Assim Agostinho interpreta as célebres palavras do Êxodo: "Ego sum qui sum" - "Eu sou aquele que sou" (Ex 3,14). Deus é o único que é em sentido forte porque é o único que permanece sempre o mesmo.

Vemos que Agostinho liga-se a Platão, que considerava verdadeiramente ser somente as ideias imutáveis de seu mundo inteligível. Ser = ousía ou essência imutável. Os entes mundanos não são plenamente ser porque estão submetidos ao movimento que os leva a perder algo do próprio ser ou mesmo próprio ser. 

Tomás de Aquino dá um passo adiante em relação a Agostinho (que é representante ainda, de certo modo, das filosofias da essência), rumo à filosofia do ser. Ele reconhecerá que o nome ser é o que mais convém a Deus (até aqui ainda estamos no passo de Agostinho), mas dirá que ser significa atualidade máxima e perfeição máxima. Tomás descobre o sentido do ser como ato, não simplesmente como imutabilidade. Desse modo, entenderá que a imutabilidade, que estava em primeiro plano para Agostinho, é algo que decorre da plena atualidade do ser. Em suma, Deus continua imutável para Tomás, mas o é porque é ato puro de ser, ao qual nada pode ser acrescentado e do qual nada pode ser subtraído, porque fora da atualidade plena do ser só há o nada. As criaturas, às quais Deus concede livremente um ato de ser de acordo com a essência de cada qual, não acrescentam nada ao Ser subsistente, que é Deus, mas são participações finitas da única Perfeição infinita (o Ser é a perfeição de todas as perfeições).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Metafísica essencial

Cornelio Fabro foi quem realçou a centralidade do ser como ato intensivo na metafísica de S. Tomás  Metafísica essencial:  1. Ipsum Esse É a perfeição máxima formal e real. Ato puro. Intensidade máxima. É participável pelas criaturas através de essências limitadas e da doação de ser como ato a tais essências.  • O ipsum Esse subsistens é a plenitude formal e atual do ser. Não é apenas a perfeição máxima “formal” no sentido lógico, mas o ato mesmo da atualidade infinita.  • Fabro enfatiza que o Esse divino é incomunicável em si mesmo (ninguém nem nada pode possuir ou receber a infinitude divina), mas é participável secundum quid , na medida em que Deus doa o ser finito às essências criadas.  • Aqui está a raiz da analogia entis : há continuidade (participação) e descontinuidade (infinitude divina versus finitude criada). ⸻ 2. Essência ( esse ut participabile ) É o ser enquanto participável, receptivo, em potência. Em si não é atual, mas uma capacidade de atuali...

Metafísica hoje? Saturnino Muratore SJ

  Saturnino Muratore SJ Resumo  — “Senso e limiti di un pensare metafisico nell’attuale contesto culturale. In dialogo con Saturnino Muratore S.J.” (Entrevista de Antonio Trupiano). Publicado em: TURPIANO, Antonio (ed.). Metafisica come orizzonte : In dialogo con Saturnino Muratore SJ . Trapani: Pozzo di Giacobbe, 2014.  Formato e objetivo. A entrevista foi organizada em dez questões estratégicas para apresentar o percurso intelectual de Saturnino Muratore (SJ) e, ao mesmo tempo, discutir o papel formativo da metafísica — sobretudo no contexto das faculdades eclesiásticas.   O que é “metafísica” para Muratore. Em vez de uma doutrina estática do “fundamento”, Muratore define metafísica como a capacidade do filósofo de “dizer o todo” — um discurso de totalidade que mantém uma instância crítica constante. Falar do todo implica dialogar com as especializações (que tratam fragmentos) e preservar a crítica para não absolutizar partes.   Relações com Jaspers e Nietzsc...

Se Deus existe, por que o mal?

O artigo ( leia-o aqui ) Si Dieu existe, pourquoi le mal ?,  de Ghislain-Marie Grange, analisa o problema do mal a partir da teologia cristã, com ênfase na abordagem de santo Tomás de Aquino. O autor explora as diversas tentativas de responder à questão do mal, contrastando as explicações filosóficas e teológicas ao longo da história e destacando a visão tomista, que considera o mal uma privação de bem, permitido por Deus dentro da ordem da criação. ⸻ 1. A questão do mal na tradição cristã A presença do mal no mundo é frequentemente usada como argumento contra a existência de um Deus onipotente e benevolente. A tradição cristã tem abordado essa questão de diferentes formas, tentando reconciliar a realidade do mal com a bondade e a onipotência divinas. 1.1. A tentativa de justificar Deus Desde a Escritura, a teologia cristã busca explicar que Deus não é o autor do mal, mas que ele é uma consequência da liberdade das criaturas. No relato da queda do homem (Gn 3), o pecado de Adão e E...