Pular para o conteúdo principal

Bíblia, inspiração e interpretação


A Bíblia Sagrada é um conjunto de livros. O nome “Bíblia” veio da língua grega (biblía é o plural de biblíon, que por sua vez é o diminutivo de bíblon, que significa “livro”). De acordo com sua raiz etimológica, portanto, Bíblia faz referência a um conjunto de livrinhos. Na verdade, segundo o catálogo católico, já presente em concílios (reuniões eclesiásticas) regionais da Antiguidade (final do século IV) e, depois, reafirmado pelo Concílio Geral de Trento (século XVI), a Bíblia é um conjunto de 73 livros, cujos tamanhos variam, mas em geral não são grandes (há mesmo “livros” que são cartas de uma ou poucas páginas, como a Carta de São Paulo a Filêmon).

Esses 73 livros foram compostos em datas e circunstâncias variadas, num período de tempo que se estende do século VIII a.C até os fins do século I ou inícios do século II d.C. Até recentemente, se admitia que no século IX a.C. já se escreviam os primeiros textos bíblicos na corte do rei Salomão, de Israel, mas estudiosos têm agora defendido a tese de que as condições de escrita em Israel só se concretizaram a partir do século VIII a.C. A Bíblia certamente recolhe tradições orais que lançam suas raízes em tempos muito antigos – como as referências a Abraão (século XVIII a.C.) e a Moisés (séc. XII a.C).

A Igreja católica ensina que toda a Bíblia é inspirada por Deus. Esse ensinamento precisa, contudo, ser bem entendido. A Sagrada Escritura (outro nome da Bíblia) certamente não caiu do céu nem mesmo foi o fruto de um ditado de Deus ao autor sagrado (chamado hagiógrafo). A inspiração consiste, antes, numa luz captada pela inteligência do hagiógrafo e numa moção que a sua vontade recebe para que, a partir do cabedal de cultura que possui, coloque por escrito aquilo que Deus quer como útil à salvação de seu povo. Muitos textos da Bíblia só chegaram à sua versão definitiva depois de compilações, costuras e releituras de outros textos. A inspiração divina diz respeito à versão final, mas não se exclui que tenha acompanhado todo o processo de produção do texto, muitas vezes complexo, orientando-o para o seu desfecho.

Se a inspiração se dá sempre segundo a cultura do hagiógrafo, é preciso estar minimamente informado sobre essa cultura para que se saiba interpretar adequadamente o texto sagrado. Evita-se o fundamentalismo ou a leitura literalista da Bíblia quando se procura entender o que Deus quis dizer pelo hagiógrafo em determinada época e em determinada circunstância e, em seguida, se procura traduzir o significado daquela palavra dada no passado para o nosso presente. Como a Bíblia não nasceu solta e sem raiz, mas tem seu solo no chão da história de um povo de fé – o antigo povo de Deus e o novo povo de Deus, a Igreja -, há de se levar em conta o que o Povo de Deus disse e diz sobre a Escritura que brotou de sua abertura ao Mistério e ilumina a sua caminhada rumo à saúde total – a salvação de Deus.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Habermas e Ratzinger. Um diálogo imprescindível

O livro Dialéctica de la secularización. Sobre la razón y la religión , fruto do diálogo entre Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas, representa um marco no esforço de aproximar fé e razão em um mundo secularizado. Trata-se de um encontro singular, pois reúne dois pensadores que muitos consideravam intelectualmente opostos: de um lado, o teólogo então cardeal Ratzinger, defensor da centralidade da fé cristã; de outro, Habermas, expoente do pensamento laico iluminista. O tema discutido — se o Estado liberal e secularizado pode sustentar-se sem fundamentos éticos prévios — toca o coração das tensões atuais entre democracia, religião e racionalidade moderna. Habermas sustenta que o Estado democrático pode fundamentar-se a partir de uma razão autônoma e pós-metafísica, sem necessidade de recorrer diretamente às tradições religiosas. Contudo, ele reconhece que a democracia enfrenta um déficit motivacional: para existir, não basta que as normas sejam juridicamente válidas, é preciso que os cida...

Revelação histórica como captação do que Deus está sempre dizendo a todos. Uma palavra sobre a teologia de Queiruga

O teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga propõe um entendimento peculiar da revelação divina, que, na sua visão, procura estar em consonância com o estágio atual dos saberes acumulados pela humanidade. Esse entendimento está, evidentemente, sujeito a críticas, principalmente por ser um entendimento novo sob muitos aspectos.  Segundo Queiruga, Deus está se doando e se comunicando totalmente desde o princípio da criação. Acontece que a criatura é finita, e só pode receber de acordo com sua capacidade. O Inteiro de Deus é recebido aos poucos, mas o processo de recepção pode crescer rumo à plenitude.  Assim, todos os povos são objeto da autocomunicação divina, mas o modo de recepção varia de uns para outros. Certamente influencia na capacidade de receber a boa vontade ou a abertura do coração, mas também as contingências e vicissitudes dos povos e indivíduos. A geografia, os acontecimentos históricos, a constituição biofísica e outros mil tipos de contingências… tudo isso entra n...

Marxismo cultural? O problema é muito mais profundo

A questão mais candente dos nossos tempos em face da fé cristã não é o “marxismo cultural”, esse espantalho que nem existe como é propalado, nem o campo de atenção mais originário é o político ou social. O grande problema é aquele anunciado por Nietzsche há mais de um século, ele mesmo defensor do niilismo (e, por sinal, profundo anti-socialista e, por, conseguinte, anti-marxista): a mudança radical do espírito e a introdução de uma nova época em que “os valores supremos perdem o valor; falta a finalidade; falta a resposta ao ‘por quê?’”. Essa nova época tem raízes longínquas, mas Nietzsche é quem tem plena consciência de seu desabrochar no ocaso da modernidade.  Depois de Hegel, a filosofia (as suas correntes majoritárias) caiu no domínio irrestrito do devir. O marxismo, como hegelianismo invertido, ainda procura estabelecer como fundamento uma estrutura estável: a lei do desenvolvimento histórico. Mas em geral, depois de Hegel, qualquer estrutura, por mínima que seja, tende a ser...