Pular para o conteúdo principal

O homem acompanhado ou o homem só?

Elílio de Faria Matos Júnior

Trava-se na atualidade uma grande luta que diz respeito a autocompreensão do homem. Qual o sentido da vida? Quais os valores que se devem abraçar? Pode-se alcançar a verdade? O que posso esperar? A semelhança dessas perguntas com as que Immanuel Kant já colocara no século XVIII não é mera coincidência. Com efeito, estamos diante de questões, por assim dizer, “eternas”. São as grandes questões fundamentais que acompanham o homem, em todo tempo e espaço, desde o despertar de sua consciência.

A luta que atualmente se trava em torno dessas questões nos arremete para o plano do real ou da constituição da realidade. O que é verdadeiramente real? Qual a estrutura básica da realidade? Em suma, o que é a realidade? Quer queiramos ou não, é a estrutura da realidade que define, objetiva e fundamentalmente, a verdade sobre nós mesmos. Uma vez que fazemos parte do Ser, o sentido da nossa vida só pode ser revelado a partir do Ser.

Já os filósofos gregos se debatiam para fazer ver o fator determinante da realidade e, com isso, alcançar uma cosmovisão, que, inclusive, trouxesse uma orientação ética. Dois nomes que se opõem surgem na aurora do pensamento filosófico e alcançam um status paradigmático. O que vem depois deles está, fundamentalmente, na linha de continuidade de um ou de outro. Trata-se de Protágoras e de Platão. Pode-se mesmo dizer que toda a história do pensamento ocidental divide-se em partidários de Protágoras e partidários de Platão.

Protágoras é conhecido pelo seu relativismo universal. Com efeito, rejeitando um ponto de apoio inconcusso, fez o sentido das coisas depender do homem e da volubilidade humana. “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são; das que não são, enquanto não são” – ensina Protágoras. O homem é o criador do sentido. Cria-se a si mesmo e o seu mundo. O que a coisa é em si mesma não interessa; é inacessível. O que importa é o que o homem pensa ou diz sobre a coisa. Tudo depende do homem, inclusive Deus. A realidade, no fundo, é o homem.

Ponto de vista diverso é o de Platão. Sua filosofia resultou de um esforço árduo, já iniciado por seu mestre Sócrates, que tinha por objetivo superar o ceticismo sofístico. Platão chegou a reconhecer que o homem não é a medida, mas é medido por uma Realidade absoluta. Ele não é a fonte do sentido, mas apenas participa dela. Santo Agostinho, herdeiro, em certo sentido, das intuições platônicas básicas, dirá que existe um cânon absoluto da verdade em virtude do qual a razão julga todas as coisas, uma luz eterna a partir da qual a inteligência vê. Nesse sentido, não é o homem, mas a Realidade a medida de todas as coisas. E a Realidade, para Platão, é distinta do mutável e do passageiro. Ela repousa em si mesma, em sua estabilidade e autotransparência; pura luminosidade!

A Civilização Ocidental, ao longo de seu percurso histórico, tem feito fundamentalmente a opção por Platão contra Protágoras. Entretanto, nos últimos dois séculos, essa opção tem sido ameaçada por pensadores que proclamam o fim do platonismo – entenda-se, o fim da metafísica. O que vemos é que estamos mergulhados no presente numa crise que diz respeito, em última análise, ao passado e ao futuro de nossa civilização. Protágoras ou Platão? Para o futuro, somos impelidos a fazer uma escolha. Não escolher é já escolher. Qual é a medida? Deus ou o homem? Mas Deus, se é Deus, não pode fazer concorrência com o homem. Assim, nossa questão ficaria melhor nestes termos: O homem com Deus ou o homem sem Deus? O homem acompanhado ou o homem só? O homem participante do ser ou o homem dominador do ser?

Sem dúvida, forças poderosas tentam virar o curso da opção que nossa Civilização Ocidental tem feito por Platão. Mas conseguirá? Poderá o homem viver só? E se a relação de transcendência for constitutiva de seu ser? A nosso ver, parece pouco provável, apesar das crises e incertezas atuais, que o homem queira se sustentar só. A medida do Ser e a luz que dele promana ainda são maiores do que as pretensões titânicas de um homem que quer ser a única fonte de sentido. Com razão dizia Péguy: “On ne dépasse pas Platon”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir