Padre Elílio de Faria Matos Júnior
O Tomás de Aquino que Padre Vaz traz para dentro de sua obra não é, de modo algum, o Tomás mumificado dos manuais. No capítulo II do livro Escritos de filosofia I – Problemas de fronteira figura o artigo Tomás de Aquino e o nosso tempo: o problema do fim do homem, artigo que tinha sido publicado originariamente na Revista Portuguesa de Filosofia em 1974 sob o título Teocentrismo e beatitude: sobre a atualidade do pensamento de Santo Tomás de Aquino. Nesse profundo texto, é ressaltada a atualidade de Tomás de Aquino e o caráter “epocal” [1] de sua obra. Entretanto, aí mesmo, Padre Vaz procura deixar claro que “não podemos repetir santo Tomás. Podemos – e devemos interpretá-lo”.[2] Isso porque, sendo a obra do Aquinate uma obra do passado, é impossível fazê-la comensurável sem mais aos nossos problemas. Faz-se necessário lançar mão de uma adequada hermenêutica que leve em consideração o tempo de Tomás, a reconstituição crítica de seus textos e o nosso presente histórico, que, de algum modo, possa conter “a obra interpretada como uma das linhas de seu relevo”,[3] de modo que “interpretar o passado implique necessariamente interpelar o presente.”[4]
Sim; para o Padre Vaz, a atualidade de Santo Tomás se verifica porque o nosso presente com suas questões pode ser interpelado por sua obra verdadeiramente “epocal”. A releitura do Aquinate pode projetar luz para o pensar filosófico sobre o nosso tempo. Esse é um exercício de pensar filosoficamente a história da filosofia. É o que Padre Vaz, na esteira de Hegel, chama de Erinnerung ou “rememoração”.
Anos depois, em seu célebre artigo Tomás de Aquino: do Ser ao Absoluto,[5] Padre Vaz volta a apresentar o modo como pensa a atualidade de Santo Tomás valendo-se do conceito-chave de “rememoração”. E deixa claro que
[...] a reflexão filosófica se dá no terreno de uma rememoração, de um tornar presente na atualidade do filosofar de uma longa seqüência de problemas, de temas e de sistemas que não foram mais do que a inscrição, no espaço do conceito, das vicissitudes culturais de um tempo. Ela leva a cabo, portanto, essa decisiva operação hermenêutica que é a leitura conceptual do presente histórico a partir de toda a substância inteligível do passado, nela recolhida sob a forma de história das idéias filosóficas, da qual recebe conteúdo a própria tradição do ato de filosofar.[6]
Desse modo, é em vista de refletir sobre o presente, com tudo aquilo que ele apresenta como desafio à consciência da gens philosophica, que o passado deve ser considerado. E o nosso tempo presente, para Padre Vaz, pode muito ganhar em inteligibilidade pelo exercício “rememorativo” da obra de Santo Tomás, mormente de sua genial metafísica do esse, já que a interpelação metafísica é constante para o espírito humano, cuja grandeza é constitutivamente metafísica. Com efeito, tal exercício, longe de ser ocioso e inútil, “permite entrever que na alma do homo technicus subsiste o homo metaphisicus”.[7]
A importância do pensamento de Tomás de Aquino e sua metafísica do esse para o pensamento do filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz é conhecida. Na verdade, Padre Vaz e Tomás de Aquino têm grandes afinidades. Paulo Meneses chega a usar o termo connaturalitas (conaturalidade) para caracterizar a relação entre Padre Vaz e o Aquinate,[8] e esclarece:
Num périplo impressionante, Vaz percorre os grandes pensadores da história da filosofia (e compraz em demorar-se [verweilen] em cada um deles, parecendo tratá-los de igual para igual), Platão e Aristóteles, Plotino e Agostinho, e finalmente Hegel [...] Mas não creio que Vaz (excetuando Santo Agostinho) desse a algum deles o nome de Mestre. Eram pensadores geniais, sobre cujo sistema refletia e, em sintonia ou contraponto com eles, elaborava seu próprio pensamento. Mestre mesmo de Vaz era Tomás de Aquino.[9]
Com efeito, Padre Vaz freqüentou as obras dos grandes nomes da filosofia e conheceu com profundidade ímpar a filosofia de um Platão ou Aristóteles, de um Agostinho ou Plotino, e é conhecida também a dedicação que dispensou ao estudo de Hegel. Entretanto, somos levados a concordar com o juízo de Paulo Meneses de que Tomás de Aquino ocupou em suas reflexões e na elaboração de seu pensamento um lugar especial. Santo Tomás e sua metafísica do esse, metafísica esta que pulsa como o coração da obra vaziana em seu conjunto.
[1] “Epocal” aqui assume o sentido de “relevante”, isto é, uma obra que marcou profundamente o desenvolvimento do pensamento humano.[2] Escritos de Filosofia I (EF I), 38[3] EF I, 39.[4] EF I, 39.[5] In EF III, 283-342.[6] EF III, p. 286-287.[7] EF III, p. 342.[8] Cf. MENESES, Paulo. Vaz e Tomás de Aquino. In: MAC DOWELL, João A. (org). Saber filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 65.[9] Ibidem.
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