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Maritain e a reformulação da teologia da graça

 A Visão de Jacques Maritain sobre a Permissão do Mal e a Graça


Jacques Maritain propôs uma alternativa ao modelo tradicional de Domingo Bañez e Reginald Garrigou-Lagrange na questão da graça, da predestinação e do pecado. Seu objetivo era preservar simultaneamente a soberania de Deus e a autêntica liberdade do homem, rejeitando a ideia de que Deus decreta infalivelmente quem terá a graça e quem terá a graça meramente suficiente sem levar em conta as escolhas humanas.


1. O Problema da Tradição Bañeziana


Maritain critica os tomistas “rígidos” da escola de Bañez, argumentando que sua explicação leva a um determinismo disfarçado. Para Bañez e Garrigou-Lagrange:

Deus decreta infalivelmente quem receberá a graça eficaz e quem terá apenas a graça suficiente.

Deus permite o pecado infalivelmente através de um decreto permissivo que assegura a queda de alguns.

O homem sempre resistiria à graça suficiente se Deus não lhe concedesse uma graça eficaz especial.


Maritain argumenta que essa teoria, na prática, torna Deus indiretamente responsável pelo mal, pois Ele decreta quem cairá no pecado ao não conceder-lhes a graça eficaz.



2. O Princípio da Dissimetria entre o Bem e o Mal


O ponto central da visão de Maritain é a dissimetria entre a linha do bem e a linha do mal:

No campo do bem: Deus é a causa universal e eficiente de todas as boas ações, pois “Deus é mais íntimo a nós do que nós mesmos”.

No campo do mal: O pecado não precisa ser “predeterminado” por Deus, pois ele é um não-ser, uma falha na ação da criatura, não algo que precisa de uma causa eficiente.


Isso significa que a relação de Deus com o bem e com o mal não pode ser tratada da mesma maneira. Deus não decreta o mal como decreta o bem; Ele apenas permite o mal passivamente, porque sua causalidade não se estende ao não-ser.



3. A Explicação do Pecado: Negatio vs. Privatio


Para fundamentar essa visão, Maritain recorre a uma distinção tomista clássica:

1. Negatio (mera negação): Uma ausência de algo que não deveria estar presente. Por exemplo, uma pedra “não vê” porque a visão não pertence à sua natureza.

2. Privatio (privação real): A ausência de algo que deveria estar presente. Por exemplo, um homem cego sofre uma privação porque a visão pertence à sua natureza.


Segundo Maritain, o pecado surge não como uma privação diretamente causada por Deus, mas como uma mera negação no primeiro momento, que só depois se torna uma privação:

Primeiro instante de natureza: O homem, por sua liberdade, pode não considerar a regra moral (negatio). Esse é um momento neutro, sem culpa.

Segundo instante de natureza: A não consideração da regra leva à deficiência moral e, portanto, ao pecado (privatio).


Esse esquema preserva a responsabilidade humana: Deus não causa diretamente a privação moral, mas permite que a liberdade finita do homem caia na não consideração da regra, que então leva ao pecado.



4. Contra os Decretos Permissivos Infalíveis


A principal implicação dessa teoria é que ela rejeita os decretos permissivos infalíveis da tradição bañeziana. Maritain argumenta:

Deus não predetermina infalivelmente que alguém cairá no pecado ao não dar graça eficaz.

O pecado ocorre porque a liberdade criada é defectível, não porque Deus decretou sua permissão infalível.

Deus prevê o pecado, mas não o determina.


Isso refuta a ideia de que Deus escolhe quem será condenado simplesmente ao não conceder a graça eficaz.



5. A Graça e a Liberdade: O Papel da “Não Resistência”


Outra inovação de Maritain é sua visão sobre a cooperação do homem com a graça. Em vez de dizer que o homem sempre resistiria à graça suficiente se Deus não concedesse graça eficaz, Maritain argumenta:

O homem pode não resistir passivamente à graça suficiente (non-resistance négative).

Se ele não resiste, Deus pode agir eficazmente, levando-o ao bem.


Isso implica que a graça suficiente realmente dá ao homem a capacidade de responder sem precisar de um novo influxo especial de graça eficaz. Ou seja, a eficácia da graça depende não de um decreto divino imutável, mas da não resistência da criatura.



6. Consequências para a Predestinação e a Salvação


A visão de Maritain tem grandes implicações para a doutrina da predestinação:

A reprovação negativa (não escolha de alguns para a salvação) não ocorre sem levar em conta as escolhas humanas.

A graça suficiente é verdadeiramente suficiente, e sua eficácia depende da resposta humana.

A universalidade da vontade salvífica de Deus é mais bem preservada.


Esse modelo evita tanto o determinismo dos bañezianos quanto o semi-pelagianismo dos molinistas, ao permitir que a liberdade humana exerça um papel real na economia da graça.



7. Conclusão: Um Modelo Mais Equilibrado


Maritain propõe uma solução intermediária entre o determinismo bañeziano e o modelo da ciência média de Molina. Seu esquema:

Mantém a soberania de Deus ao dizer que Ele é a causa do bem.

Preserva a liberdade humana ao reconhecer que o mal surge da própria deficiência da criatura.

Substitui os decretos permissivos infalíveis por uma visão onde Deus prevê, mas não decreta a infalibilidade do pecado.


Essa abordagem metafísica permite explicar a relação entre graça e liberdade sem comprometer a bondade de Deus ou a responsabilidade humana.






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