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Trindade divina: uma só realidade em três modos de subsistência

 Por sugestão de um amigo, que me pedia uma ilustração sobre o mistério da Trindade em Deus, escrevo o seguinte texto: 

O último pensamento de S. Tomás sobre a Trindade em Deus está muito próximo do que foi defendido por K. Rahner no século XX. 

Rahner defendeu que em Deus há três modos de subsistência. Alguns o querem acusar de modalismo, mas, a meu ver, sem razão. 

O modalismo não defende a subsistência dos modos distintos, mas modos sem subsistência, modos econômicos, por assim dizer temporais, em relação a nós. Deus seria chamado de Pai, Filho e Espírito porque se teria mostrado como Pai, Filho e Espírito na história, para nós, mas em si mesmo seria simplesmente Deus. O modalismo tira a trindade da essência eterna de Deus.  

O entendimento de Rahner é bem outro. Os modos em Deus são subsistentes, constitutivos da essência divina. E, assim, existem na eternidade de Deus. Subsistem na sua distinção e mútua relação. São o próprio Deus. 

Rahner ressalta sobretudo a unidade e a unicidade divina: Deus é uma só realidade, um só sujeito, não três. Deus é numericamente um. Quase poderíamos dizer que é uma só pessoa, se o termo não não fosse consagrado pela tradição para referir-se ao que Rahner chama de modos de subsistência. O último Tomás e também Rahner evitam dizer que as pessoas em Deus possam ser entendidas como relações entre eu e tu. São relações, mas relações que se dão no único Sujeito divino dotado de conhecimento e vontade. É o Pai, fonte da vida divina, que se conhece (cujo fruto é o Verbo) e se ama no Verbo (cujo fruto é o Amor). Se cada pessoa divina fosse propriamente um eu ou um sujeito em si, cada uma teria de ter a processão de um verbo e de um amor, o que multiplicaria indefinidamente as trindades. Assim, só se poderia falar das relações trinitárias como sendo de eu para tu de modo impróprio. O Verbo encarnado, que se dirige ao Pai como um tu, o faz porque na encarnação se relaciona com o Pai a um novo título, com a psicologia de um ser humano. 

Essa única realidade que é Deus subsiste de três modos distintos. Há atividades eternas distintas em Deus: a atividade do inteligir e do querer ou do conhecimento e da vontade, como se dá em todo sujeito espiritual. Do ser de Deus procede o Verbo interior através da atividade do inteligir. Do ser de Deus também procede o Amor através da atividade do querer. Assim temos três modos subsistentes em Deus: o Ser, do qual toda a vida divina procede; o Verbo que procede do Ser; e o Amor que procede do Ser e do Verbo (o querer supõe o Verbo do conhecimento). O modo do qual tudo procede recebe o nome de Pai. É o Pai que se conhece e se ama. O modo que procede do Pai como uma imagem perfeita (imagem intelectual) de Deus recebe o nome de Filho. O modo que procede do Pai e do Filho como o êxtase de Deus recebe o nome de Espírito Santo. 

Esses modos subsistentes são chamados pela tradição de pessoas. Mas pessoa aqui, já se vê, não é um núcleo psicológico autônomo. É por serem subsistentes distintos que os modos são ditos pessoas. Essas pessoas conservam uma semelhança apenas analógica com as pessoas humanas. O que há de ponto de contato entre as pessoas divinas e as pessoas humanas é a subsistência distinta e incomunicável (pessoa é o nome comum dos subsistentes irrepetíveis e incomunicáveis; assim, o Pai não é o Filho, à semelhança do Pedro que não é a Maria: Pai e Filho, Pedro e Maria são pessoas, isto é, subsistentes distintos) e a natureza espiritual (pessoa só se diz de natureza espiritual, e as pessoas divinas são espirituais à semelhança das pessoas humanas). É claro que a semelhança entre o divino e o humano é analógica e indica uma dessemelhança muito maior. Se em Deus a noção de pessoa (subsistência espiritual) não implica núcleo psicológico autônomo, no homem, sim.

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