Pular para o conteúdo principal

A Luz que acende a luz


Agostinho, além de filósofo e teólogo, foi místico. 


Deus está na dimensão mais profunda (e mais alta) da alma. Trata-se daquela dimensão pela qual a alma pode ver o que vê. 

Se a alma vê (a consciência é um campo de visão espiritual), ela só pode ver porque é iluminada por uma Luz. A alma tem luminosidade com a qual ilumina as coisas, concebendo ideias e palavras. Mas o fundamento desta luminosidade é a Luz inefável pela qual a luminosidade existe. A respeito das ideias transcendentais, a alma não as julga, mas é julgada por elas. Tais são as ideias, por exemplo, de harmonia, perfeição e, em última análise, as ideias de verdade e de ser, de máxima transcendentalidade. Tais ideias decorrem da Luz de que a alma não dispõe, Luz que, ao contrário, dispõe da alma. S. Agostinho se referia a esta Luz que acende a própria luminosidade da alma nestes termos:

“Reconhece, portanto, o que é a suprema conveniência: não te dirijas para fora, regressa a ti mesmo; no homem interior habita a verdade; e, se deparares com a tua natureza mutável, ultrapassa-te a ti próprio. Mas recorda que, quando te ultrapassas, transcendes a alma racional: inclinas-te, portanto, para onde o próprio lume da razão se acende. De fato, onde chega todo aquele que faz um bom uso da razão, a não ser à verdade? A verdade certamente não se alcança a si própria raciocinando, mas ela própria é aquilo que desejam os que raciocinam. Aí verás uma conveniência à qual nenhuma outra se sobrepõe, e tu próprio procuras estar em acordo com ela. Confessa que tu não és o que ela própria é: pois de fato ela não se procura a si própria; tu, porém, procurando-a, alcançaste-a – não através de lugares espaciais, mas com o afeto da mente –, a tal ponto que o próprio homem interior entra em concordância com aquele que o habita, não por meio do prazer ínfimo da carne, mas pelo supremo e espiritual prazer” (De uera religione, 39, 72).

Como esta Luz incriada, que é Deus, é a condição última de possibilidade de toda ideia ou palavra da alma, ela mesma está acima de qualquer ideia ou palavra que a alma humana possa conceber. Por isso, o silêncio contemplativo é a grande atitude diante da Luz inefável, e isso é causa de suprema alegria espiritual!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bíblia: inspiração, pedagogia e revelação

Inspiração bíblica: Deus fala na história e não por ditado Durante muito tempo, imaginou-se a inspiração bíblica segundo um modelo simplificado, quase mecânico: Deus “ditaria” e o ser humano apenas escreveria. Ou, de modo mais sofisticado, Deus inspiraria o autor humano a escolher cada palavra disponível na sua cultura para expressar ideias, que seriam queridas diretamente por Deus, o que chega a quase equivaler a um ditado. Essa compreensão, embora bem-intencionada, não faz justiça nem à riqueza dos textos bíblicos nem ao modo concreto como Deus age na história. Hoje, a teologia bíblica e o Magistério da Igreja ajudam-nos a entender a inspiração não como um ditado celeste, mas como um processo vivo, histórico e espiritual, no qual Deus conduz um povo inteiro e, dentro dele, suscita testemunhas e intérpretes. A Bíblia não caiu do céu pronta. Ela nasceu na vida concreta de um povo que caminhava, sofria, lutava, errava, crescia, esperava e rezava. Por isso, antes de falar de livros inspi...

A importância de Étienne Gilson para a Metafísica

Étienne Gilson (1884-1978) foi um dos mais importantes historiadores da filosofia medieval e um grande defensor do realismo tomista, especialmente na sua interpretação da metafísica de Santo Tomás de Aquino. Sua contribuição é notável por vários motivos: 1. Redescoberta da Metafísica Tomista No século XIX e início do século XX, o pensamento de Santo Tomás era muitas vezes reduzido a um essencialismo aristotélico ou a uma teologia sistemática, sem a devida ênfase em sua metafísica do ser ( esse ). Gilson foi um dos responsáveis por recuperar e enfatizar a originalidade de Tomás, destacando que: • A metafísica tomista não é apenas um estudo da essência das coisas, mas principalmente uma investigação sobre o ser como ato ( actus essendi ). • Tomás de Aquino supera Aristóteles, pois enquanto Aristóteles se concentrava no “ente enwuabro ente” ( ens qua ens ), Tomás identificava o “ser” ( esse ) como o princípio mais profundo da realidade. Essa interpretação levou Gilson a cunhar a e...

A morte de Jesus. Visão de Raymond Brown

  A visão de Raymond E. Brown sobre a morte de Jesus é uma das mais respeitadas no campo da exegese católica contemporânea. Brown foi um dos maiores especialistas em literatura joanina e autor da monumental obra The Death of the Messiah (1994, 2 vols.), que analisa de maneira técnico-teológica os relatos da Paixão nos quatro evangelhos. Seu trabalho é uma síntese rigorosa de crítica histórica, análise literária e teologia bíblica, sustentada por fidelidade à fé católica e abertura ao método científico. Abaixo, apresento um resumo estruturado da sua interpretação da morte de Jesus: ⸻ 1. A morte de Jesus como fato histórico e evento teológico Para Brown, a morte de Jesus deve ser compreendida em duplo registro:  • Histórico: Jesus foi condenado e crucificado por decisão de Pôncio Pilatos, sob a acusação de reivindicar uma realeza messiânica que ameaçava a ordem romana.  • Teológico: desde o início, os evangelistas narram a Paixão à luz da fé pascal, como o momento culminant...