Pular para o conteúdo principal

O homem e a religião


Se não encontramos em nós mesmos as condições de possibilidade de receber uma luz de ordem metafísica; mais: se não reconhecemos em nós uma abertura dinâmica, um movimento para uma luz que em si mesma ultrapassa todas as exigências e expectativas puramente humano-mundanas; ou seja, se não reconhecermos que estamos já, de alguma maneira, para além do mundano e do meramente humano, todo o discurso da religião, com suas narrativas e dogmas, de modo especial nestes tempos de grandes mudanças, soará como obsoleto. Ou então estará simplesmente entregue ao sentimentalismo que não convence os espíritos mais exigentes ou ao fanatismo ou ao fundamentalismo que o desfiguram. 

A revelação cristã não é simplesmente um pacote que cai abruptamente do céu sem nenhuma relação com o que o homem é em sua constituição íntima. Embora o conteúdo ou a finalidade da revelação ultrapasse toda medida humana, pois, em última análise, o seu objeto é a transformação em Deus, é graça pura, ela não encontra na constituição humana um terreno indiferente ou neutro. Ao contrário, o homem está aberto — ativa e dinamicamente aberto — a uma palavra ou a uma luz transcendente. Ele anseia por isso sem saber dar-lhe nome e conteúdo precisos. 

Em seu ser humano, o homem já vive, de alguma maneira, para além do humano-mundano. É tomando consciência disso que o homem atual — esclarecido, informado das grandes conquistas dos saberes acumulados, conhecedor do fim das sociedades sacrais e habitante do clima desenhado pela ciência e pela técnica, também muitas vezes desiludido pela ondas de niilismo e irracionalismo — poderá ver que o que diz a religião em essência não perdeu a atualidade; antes, é de uma atualidade impressionante, só que de uma outra ordem, não daquela simplesmente pragmática.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir