Pular para o conteúdo principal

A técnica como fim e o problema da transcedência

 


INTRODUÇÃO 

Este breve artigo é fruto da Aula Magna que ministrei em agosto de 2019 por ocasião da abertura do 2º semestre do Curso de Teologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF) e do Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antônio (ITASA), de Juiz de Fora. Visa a lançar elementos de reflexão sobre o atual momento da história, caracterizado pela intensa presença da técnica, que, sem dúvida, contribui positivamente com a existência do homem no mundo, mas que tende a absorver todas as energias humanas, pretendendo tornar-se o fim supremo de nossas atividades. O homem poderia existir para a técnica?

Dependemos fundamentalmente, para essa reflexão, dos textos em geral do filósofo italiano Emanuele Severino[1].


O TERROR DO DEVIR E O SABER QUE SALVA 

A civilização ocidental alcançou ser a primeira civilização planetária da história. Ela exportou a todos os recantos da Terra, não tanto valores metafísicos ou éticos, mas a metodologia e os resultados das ciências e a imensa capacidade técnica de intervir na natureza e na vida e fabricar artefatos. A civilização planetária é a civilização da técnica.

O homem antigo e medieval sempre foi prático, sempre construiu artefatos, mas o saber supremo, na Antiguidade e na Idade Média, era de caráter mítico-teológico ou metafísico-teológico. Nesse sentido, o homem do passado tinha uma perspectiva toto cœlo diversa da do homem atual. Mas como nasceu esse saber supremo, de caráter teológico, do homem antigo e medieval?

O devir sempre assustou o homem de antigamente, pois que, instaurando a imprevisibilidade, gera desconforto e ansiedade. O golpe supremo do devir aplicado ao homem é a morte, ato pelo qual o homem cessa de existir enquanto ser no mundo. Não é à toa que o devir ofereceu ocasião para que o homem pensasse e sentisse a necessidade de superá-lo, ou forjando mitos, ou procurando pelo raciocínio a verdade estável das coisas, ou ainda acolhendo uma revelação divina. O maravilhar-se ou estupefar-se (thaumazein), que, segundo Aristóteles, é a causa do mito e da filosofia, não terá sido simplesmente uma experiência estética ou de pura curiosidade, mas também e de forma mais originária, uma experiência de susto ou terror diante da imprevisibilidade do devir.

Ésquilo é um dos primeiros a considerar a busca da verdade como remédio contra a dor originada pelo devir. O pensamento de Esquilo é expresso no hino a Zeus no Agamenon, a primeira das três tragédias que constituem a Orestea:
“Zeus, seja quem for ele, a ele me dirijo com este nome, se lhe é caro ser chamado assim. Se a dor, que conduz à loucura, deve ser expulsa do espírito com verdade, então, avaliando todas as coisas com um saber firme e que não se deixa desmentir, não posso pensar senão em Zeus” (Apud SEVERINO, 1985).
O mito nasce como remédio contra a dor, mas o que motiva o nascimento da filosofia é a consciência de que o mito pode ser contestado. Ora, um remédio que pode ser contestado como remédio não é remédio confiável. A filosofia, assim, nasce como busca de um saber incontrovertível que possa, segundo as palavras de Ésquilo, expulsar a dor do espírito com verdade. O Cristianismo assumirá a filosofia dentro de um conhecimento mais amplo revelado e aceito pela fé na Palavra de Deus, o qual não pode enganar-se nem enganar a ninguém.

Ora, em tudo isso nós podemos ver que o remédio contra a dor do homem está em conhecer uma realidade que esteja subtraída ao devir e à imprevisibilidade. Tal conhecimento, contudo, deve ter o selo da incontrovertibilidade. De nada adiantaria o homem pretender ligar-se a algo estável se o saber que consente fazê-lo não fosse estável. Sem saber estável não pode haver ligação com o que é estável. Entre os gregos, esse saber estável foi chamado de sophía, alétheia, episthéme e philosophía. Entre os cristãos, esse saber é o da fé, que é refletido pela teologia revelada ou teologia sagrada.

O devir que assusta o homem e provoca-lhe a dor do viver é superado pelo conhecimento estável sobre coisas estáveis. A ideia do Bem em Platão, o Motor Imóvel em Aristóteles, o Uno em Plotino, Deus no Cristianismo, esses são os nomes da primeira realidade estável que garante a vitória sobre o devir. Esse ideal de um conhecimento firme de coisas firmes permaneceu no pensamento ocidental até a sua última grande síntese metafísica, a de Hegel. Embora a filosofia de Hegel seja a filosofia do devir histórico, nela ainda se faz presente uma estrutura estável segundo a qual se processa o devir, e ao filósofo é dado tomar consciência dessa estrutura estável e chegar ao Saber Absoluto acerca do Absoluto.

Depois de Hegel, entretanto, os grandes corifeus do pensamento ocidental chegam à conclusão de que não existe um conhecimento estável e de que, portanto, nada deve ser considerado firme. Aliás, uma só coisa é retida como evidente: o devir. E se o devir é a grande verdade, não pode haver uma realidade imutável. Se o imutável existisse, os seus cânones eternos delimitariam o devir e, então, o devir não seria devir. Mas o devir é a grande evidência do pensamento contemporâneo; logo, o Imutável não pode existir.

Num mundo em que o devir é a grande evidência, como o homem, que dele tinha tanto medo, lida com a existência? O que apavorava o homem antigo, hoje não é visto, porque é, de alguma maneira, ocultado pelo poder da técnica, isto é, o poder alcançado pelo homem de intervir no mundo e na vida para produzir coisas, proteger e potencializar a própria vida e mudar incessantemente o curso da natureza e do próprio devir. Na modernidade, o homem se foi tornando, cada vez mais, maître et posseseur de la nature, para dizer como Descartes. E isso o ajudou a vencer o medo do devir.


FORÇAS DO OCIDENTE

Em que pese a persuasão de que o devir é a grande evidência do pensamento contemporâneo, há ainda forças no Ocidente que procuram, cada uma a seu modo, oferecer uma visão mais ou menos abrangente do sentido da existência ou da trajetória do homem no mundo. Tais forças são: o cristianismo, o capitalismo, a democracia e ainda, em certa medida, o socialismo, e o nacionalismo, que ultimamente ganha força na Europa e em outras partes do mundo.

Cada uma dessas forças tem, naturalmente, uma finalidade essencial que a define e que a coloca em tensão ou mesmo em contradição com as outras forças, como trataremos agora de mostrar. É claro que essas forças estão misturadas na vida concreta das sociedades ocidentais, mas podemos fazer um exercício de reflexão e identificar elementos básicos que distinguem cada uma delas e as coloca todas, de certa maneira, em competição umas com as outras.

A finalidade do capitalismo é o lucro, o que traz uma visão individualista da vida e uma crítica in actu exercito à solidariedade pregada pelo cristianismo e à distribuição do lucro advogada pelo socialismo; o capitalismo está também em tensão com a democracia, na medida em que a democracia prega a liberdade e a participação de todos e o capitalismo faz a renda concentrar-se em poucas mãos, relegando grande parte das pessoas à miséria. Capitalismo e nacionalismo estão também em conflito nestes tempos de globalização econômica. Os interesses do capital internacional colidem com uma visão nacionalista.

A finalidade do cristianismo é a salvação, acontecimento transcendente, de caráter individual, mas também social e até mesmo cósmico. O cristianismo tem uma visão comunitária e transcendente da vida, trazendo, assim, uma crítica ao individualismo capitalista e ao imanentismo socialista. O cristianismo está também em tensão com a democracia na medida em que certas verdades ou valores absolutos reivindicados por ele não estão à mercê da mera vontade ou aprovação popular. Sendo o cristianismo universal, ele também se coloca em tensão com a ideologia nacionalista.

A finalidade do socialismo é a distribuição das riquezas; ele traz consigo, ao menos em sua forma originária, uma visão imanentista da vida e contém uma crítica dura ao capitalismo e uma crítica talvez menos dura à religião. O socialismo está também em tensão com a democracia, na medida em que professa verdades absolutas (que não dependem da decisão popular) sobre o sentido da vida e da história. O socialismo originário é internacional, e assim ele se coloca em tensão com o nacionalismo.

Há também a democracia, cuja finalidade é a participação e a liberdade de todos, mas que atrita com o socialismo (no que se refere à liberdade dos indivíduos), com o capitalismo (na medida em que este deixa pra trás na pobreza grande parte dos membros da comunidade) e com o cristianismo (na medida em que este defende valores éticos absolutos e a democracia parte do pressuposto de que o único absoluto é a vontade do povo). A democracia está também em atrito com o nacionalismo, na medida em que este traz em seu bojo tendências autoritárias e xenófobas.

Por fim, há o nacionalismo, cujo escopo é a afirmação da nação e do seu bem. O nacionalismo entra em conflito com o cristianismo e o socialismo na medida em que estes têm finalidades globais, e não se deixam restringir ao âmbito nacional. Entra em conflito também com o capitalismo, na medida em que os interesses internacionais do capital exigem a superação do protecionismo nacional, típico do nacionalismo. O nacionalismo colide ainda com a democracia, na medida em que, para realizar os seus fins, apresenta elementos de índole autoritária.

Procuramos aqui “desnudar” cada força para fazer aparecer a sua finalidade “pura”, diríamos. Trata-se de um exercício de abstração necessário entender a essência de cada uma delas. Temos consciência, porém, de que na realidade concreta as coisas estão misturadas. 


A TÉCNICA

Diante desse emaranhado de finalidades conflitantes e tensões entre as diversas forças do Ocidente, o que sucede? Já dissemos que a primeira civilização planetária da história é a nossa civilização, a civilização da técnica. E o que é a técnica? É o que passaremos a ver.

A técnica é um instrumento. O dicionário Houaiss a define como “conjunto de procedimentos ligados a uma arte ou ciência” (HOUAISS, 2009). Procedimento, por sua vez, é um fazer. A técnica está ligada ao fazer. Aristóteles distinguiu três campos da atividade humana: a contemplação, pela qual o homem vê e admira o que é sempre o mesmo, o agir, pelo qual o homem constrói-se a si mesmo pelos atos livres, e, por fim, a técnica, pela qual o homem constrói artefatos, liga meios a fins e, de alguma maneira, domina o mundo.

Devido ao amplo desenvolvimento do conhecimento científico dos nossos tempos, a técnica goza de um grande prestígio, nunca visto antes. Se para Aristóteles a atividade mais nobre era a contemplação, o homem atual considera a sua capacidade de intervir no mundo o que há de mais importante.

As ciências modernas matematizam o mundo e a vida em vista da possibilidade de controlá-los, de modo que elas não são simplesmente um conhecimento pelo amor do conhecimento, como o é a metafisica ou a teologia sagrada (a teologia é principalmente especulativa e contemplativa, segundo a visão de S. Tomás). No saber das ciências modernas já está sempre presente a orientação para a técnica, isto é, está presente a capacidade, a representação e a vontade de proceder pela intervenção no mundo. A técnica – esse conjunto de procedimentos ligados à ciência – tornou-se tão poderosa no mundo de hoje, que ninguém precisa ser informado a respeito de sua eficácia. Vivemos num mundo habitado pelos produtos da técnica e pelo proceder técnico.

E aqui entra algo verdadeiramente curioso. As grandes forças do Ocidente de que falamos – cristianismo, capitalismo, democracia, socialismo – estão em conflito entre si, como vimos. Cada qual tem uma finalidade que colide, em maior ou menor grau, com a finalidade da outra.

Mergulhados que estamos na civilização da técnica, é natural que cada uma dessas forças do Ocidente procure se valer do grandioso poder que a técnica oferece. A técnica é um grande meio ou instrumento para potencializar a finalidade de cada força. Assim, cristianismo, capitalismo, democracia, socialismo e nacionalismo procuram, naturalmente, potencializar os próprios interesses pelo recurso à técnica.


A TÉCNICA, DE MEIO, TORNA-SE FIM

A finalidade de cada uma das forças do Ocidente é potencializada pela técnica. As diversas forças sentem a necessidade de potencializar cada vez mais a sua finalidade porque estão em tesão e conflito entre si. A potencialização da própria finalidade transforma-se em questão de vida ou morte para cada força.

Mas o que acontece quando muitas forças vivem sob a urgência de potencializar a sua finalidade? Para potencializar eficazmente a própria finalidade, cada força deve ajustar o mais possível o instrumento que potencializa a finalidade. Ora, esse instrumento é a técnica. Desse modo, para potencializar as suas finalidades, as diversas forças do Ocidente devem potencializar a técnica.

É aqui que acontece a grande inversão. De meio, a técnica torna-se fim. O cristianismo, o capitalismo, a democracia, o socialismo e o nacionalismo, cada qual deve investir na técnica, sob pena de perder no confronto com as demais forças antagônicas. Mas ao se investir na técnica, sem a qual a finalidade não pode ser potencializada, acaba-se por fazer da técnica a própria finalidade, a finalidade suprema.

A verdade é que a potencialização do instrumento técnico tende a absorver as principais energias do homem, tornando-se o supremo fim da atividade humana. A ironia é que as forças do Ocidente, ao se verem constrangidas a potencializar o instrumento para realizar a própria finalidade, acabam tirando energia da finalidade autêntica e transformando o instrumento no grande fim.

O risco que se corre aqui – e que já é realidade – é que o domínio da técnica sufoque tudo o mais e que toda finalidade, a não ser a do aprimoramento da técnica, seja diluída no imenso aparato técnico.

Vejam-se as palavras de Emanuele Severino:
“Hoje a técnica é o fundamento da salvação de toda finalidade; portanto, toda finalidade, para salvar a si mesma, é obrigada a assumir como finalidade a potencialização do próprio Meio: para salvar a si mesma toda finalidade é constrangida a renunciar a si mesma” (SEVERINO, 2014, p. 72).
E o significado do grande perigo do domínio do aparato técnico, do mundo da eficiência, foi traçado por Salvini:
“O primeiro, senão o único objetivo do trabalho e do pensamento humano, é a eficiência; o cálculo técnico é sempre superior ao juízo humano; a subjetividade é um obstáculo à clareza do pensamento; tudo o que não se pode medir não existe ou não tem valor [...] a sociedade é muito melhor se os seres humanos estão à disposição das suas técnicas e das tecnologias. Os homens, na verdade, valem menos do que o aparato técnico” (SALVINI, 1994).

JUÍZO AXIOLÓGICO À LUZ DE UMA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICO-TEOLÓGICA MODO DE CONCLUSÃO 

Vimos até aqui que a nossa civilização é a civilização da técnica e que, enquanto tal, alcançou ser a primeira civilização planetária da história. Vimos também que o homem, para superar o devir e o terror que o devir causa, confiou-se a uma realidade permanente e eterna, mas também vimos que, desde Hegel, o pensamento ocidental majoritário diz não haver nada de permanente e eterno, a não ser o próprio devir.

Ora, é no ambiente marcado pela convicção de que nada é permanente e eterno que triunfa a técnica, como capacidade e instrumento efetivo de dominar o devir pelo próprio devir das intervenções do homem sobre o mundo e a vida. É nesse contexto também que as forças do Ocidente, que lançam raízes no passado, procuram valer-se da técnica para atingir a própria finalidade. Mas é ainda nesse contexto que o aparato técnico tende a tornar-se a suprema finalidade da atividade humana, sufocando todos as outras finalidades.

Heidegger vê o domínio da técnica em nosso tempo como fruto de algo que já estava presente na filosofia grega a partir de Platão. Na modernidade, a partir de Descartes, segundo Heidegger, o germe da dominação técnica teria crescido e teria começado a produzir seus frutos. Para o pensador da Floresta Negra, o aparato técnico só se impôs porque o homem esqueceu-se do Ser. A representação do ente, o conceito de verdade como adequação e a consequente dominação humana sobre o ente teria acabado por gerar a dominação técnica sobre o homem. É na medida em que o homem superar o humanismo que ele poderá ser o pastor do Ser. O humanismo, para Heidegger, coloca o homem no centro, o homem com a representação do ente em sua inteligência, o homem que, ao dominar o ente, esquece-se do Ser do ente. Mas o centro é o lugar do Ser, não do homem.

O esquecimento do Ser teria mesmo começado com Platão como quer Heidegger? Essa é uma questão controversa, sobre a qual os estudiosos disputam. Como quer que seja, têm surgido severas e eruditas críticas a Heidegger que veem que o paradigma que ele aplica invariavelmente a toda a história da filosofia não é senão fruto de seus próprios pressupostos. Não se poderia falar de esquecimento do ser a respeito do neoplatonismo, de modo especial de Porfírio (que usa a expressão o verbo ser no infinitivo – einai – para falar da realidade mais real), nem da filosofia do ato de ser de Tomás de Aquino, recuperada no século XX por eminentes pensadores, quais J. Maritain, E. Gilson e C. Fabro.

A nosso ver, o esquecimento do Ser tem sua grande expressão quando se inaugura o conhecimento científico moderno no século XVII, que, em si mesmo, é um conhecimento vocacionado à manipulação técnica. A ciência moderna conhece por um ato de abstração extrema, pois que reduz o real às constantes matematizáveis. A transcendência real, que podemos reconhecer numa filosofia do ser, é transmutada em transcendência lógica. A inteligência, que, partindo do mundo sensível, chegava a reconhecer na transcendência do inteligível uma realidade mais densa e mais real como fundamento, passa a funcionar como representadora e operadora de um mundo indefinido de objetos potencialmente manipuláveis em linha horizontal.

A pergunta que se levanta aos olhos do filósofo e do teólogo é esta: estaria a dominação do aparato técnico à altura do homem e de suas exigências mais profundas?

Para muitos, essa pergunta não poderia nem mesmo ser levantada, visto que não há resposta para quem seja o homem. O estruturalismo, por exemplo, dilui o homem nas estruturas, e acaba por liquidar de vez com a ideia mesma de homem. Daí, aos olhos de muitos, ser impossível uma antropologia que quisesse falar de traços essenciais do homem.

No entanto, um grande filosofo brasileiro ousa ainda fazer antropologia filosófica. E oferece boas razoes para isso. Trata-se do jesuíta Henrique Claudio de Lima Vaz.

O homem, para Lima Vaz, é expressividade. Não é um sujeito puro, mas é um sujeito que se expressa por meio da natureza, do mundo, das relações e das condições que lhe são impostas. O motor da expressividade é a abertura ao Ser, que distingue o homem a partir da sua raiz mais profunda - a relação de transcendência. 

Antes de tudo, o homem se vê como um corpo, mas entre o corpo e a sua intencionalidade última, que é o Ser, não há simetria; logo, o homem é mais que o seu corpo próprio. O homem se vê também como psiquismo, mas entre o psiquismo e a sua intencionalidade última, que é o Ser, não há simetria; logo, o homem é mais que o seu psiquismo. O homem, então, se vê como espírito; só entre espírito e ser há simetria. O espírito é tal por sua correlação com a infinitude do Ser. Diz Lima Vaz sobre a atividade humana: “(...) o somático e o psíquico, que se mostram como estruturas necessariamente pressupostas a seu exercício, são suprassumidos na intencionalidade própria do espírito, ou seja, na abertura do espírito à universalidade do ser” (LIMA VAZ, 2000, p. 241). A etimologia da palavra espírito (spiritus em latim, que traduz o grego pneuma e o hebraico ruah, significa vento ou sopro) já indica que para o espírito não há delimitação; ele é como o vento que corre pelo infinito.

Mas atenção: a simetria entre o espírito finito do homem e o Ser é simetria formal; por isso, o homem será sempre ânsia pelo Ser absoluto real. O homem é ser na natureza, ser com os outros, ser no mundo e, finalmente, ser para a transcendência. Pela presença formal do Ser no seu espírito, o homem é, desde a raiz, ser para a transcendência. Por causa da transcendência formal do Ser em seu espírito, o homem é lançado na busca da Transcendência real, causa e fim da transcendência formal.

A questão decisiva que se joga aqui não é senão uma: poderá o homem, que é abertura e ao Ser, satisfazer-se com o mundo horizontalmente indefinido de objetos técnicos? O homem poderá renunciar a finalidades para entregar-se a meios que se tornam fins? A abertura humana ao Ser supõe que o próprio Ser atue no homem. Agostinianamente falando, o homem não procuraria o Ser se o Ser já não fizesse morada no seu íntimo. E, no entanto, essa presença mais íntima do que a intimidade humana, pode ser obnubilada. Agostinho experimentou na carne o drama de procurar fora o que desde o início estava dentro.

A relação do homem com o Ser exige a subida do espírito, pois que o Ser, de cuja intencionalidade vive o espirito, está sempre além – e pode-se dizer que, para usar uma metáfora espacial, está acima de toda a atividade humana dada ou realizada neste mundo -, ao passo que a cultura da dominação técnica exige a dispersão do espírito no mundo dos instrumentos e dos objetos usados e construídos.

Estamos aqui diante de duas concepções antropológicas antagônicas, em forte tensão e conflito: o sentido substancial da existência do homem está na potencialização dos instrumentos ou está no reconhecimento do Ser? Diante dos poucos elementos da antropologia de Lima Vaz que vimos, a resposta não é difícil: o homem é possuído pelo Ser antes de possuir coisas pela técnica. Mas estará o nosso tempo apto a ouvir a voz do Ser, que brota nas mais profundas regiões do espírito? Ou se deixará cada vez mais consumir pela dispersão, isto é, pela busca sem fim do dominável e operável – num movimento que Hegel chamava de “mal infinito”?



Referências

HOUAISS, Antônio, VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Antropologia filosófica I. 5.ed. São Paulo: Loyola, 2000.

SALVINI, G. La tecnologia: aiuto o pericolo? In La Civiltà Cattolica, v. 145, n. 2, p. 159, 1994.

SEVERINO, Emanuele. Interpretazione e traduzione dell’Orestea di Eschilo. Rizzoli, 1985.

SEVERINO, Emanuele. La potenza dell’errare: sulla storia dell’Occidente. Milano: BUR Saggi, 2014.



Resumo

O presente artigo visa a mostrar que a técnica tem se tornado o fim da civilização ocidental, já universalizada enquanto cultura da técnica. A pergunta que se levanta é se o ser humano, fundamentalmente aberto à transcendência do Ser, poderia contentar-se em viver orientado fundamentalmente para o operável e o manipulável. O ser humano não seria possuído pelo Ser antes de possuir a técnica? Se o ser humano se esquecer do Ser, não correrá o risco de ser dominado pela técnica? 


Abstract

This article aims to show that technique has become the end of Western civilization, already universalized as a culture of technique. The question that arises is whether the human being, fundamentally open to the transcendence of the Being, could be content to live fundamentally oriented towards the operable and the manipulable. Would not human being be possessed by the Being before possessing the technique? If the human being forgets the Being, doesn’t he risk being dominated by technique?

__________
[1] Os textos publicados por Emanuele Severino na Itália são abundantes; gostaria de destacar este: SEVERINO, Emanuele. La potenza dell’errare: sulla storia dell’Occidente. Milano: BUR Saggi, 2014.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir