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Estamos no horizonte da Verdade


Retenho que o primeiro ponto do início crítico da filosofia seja a consciência de que estamos no horizonte da verdade. Não é preciso — nem mesmo é possível — determinar criticamente, de início, um conteúdo específico da verdade. Com efeito, só poderemos determinar, filosoficamente falando, conteúdos específicos mínimos de verdade, e isso depois de muito trabalho. A filosofia é a epistème das poucas e grandes verdades, ao contrário das ciências particulares, que são detalhistas, discorrem sobre muitas coisas, mas nunca pretendem alcançar grandes verdades nem mesmo demonstrar seus pressupostos. A filosofia é o único saber que não pode dar-se o luxo de assumir pressupostos de forma dogmática. 

No entanto, seria vão filosofar (e também fazer qualquer outra ciência) sem a intenção voltada para a verdade. Sem a intencionalidade da verdade, nada poderia ser tido como verdadeiro nem falso, e não haveria sentido algum em argumentar sobre o que quer que seja.

Podemos estabelecer que estamos no horizonte da verdade de forma crítica e incontrovertível? Desejo mostrar que sim. Ora, uma afirmação é julgada incontrovertível se é capaz de estar de pé por si mesma. E fica de pé por si mesma aquela afirmação que nega a sua negação. Esse é precisamente o caso da existência da verdade. A verdade em geral existe. Estamos no horizonte da verdade. Essa afirmação se mantém de pé e nega a sua negação, pois que todo aquele que nega que a verdade existe, pretende que sua afirmação seja verdadeira; ora, se há algo verdadeiro, então a verdade existe. Em outras palavras: a negação da verdade em geral nega a si mesma, estabelecendo assim a incontrovertibilidade da existência da verdade. A existência da verdade é, pois, o horizonte do espírito, já que o espírito não poderia negar a verdade sem contradizer-se, isto é, sem negar em ato o que nega semanticamente.
 
Estar no horizonte da verdade é a condição transcendental de toda verdade específica. Esse estar no horizonte da verdade é já um conteúdo verdadeiro, mas é um conteúdo transcendental, não específico, um conteúdo verdadeiro que é a condição de todo conteúdo específico de verdade. 

Comentários

  1. Como bem soube ilustrar, o próprio ato de negar alguma coisa, já parte de uma afirmativa, Desta forma torna-se impossível não nos situarmos dentro do horizonte da verdade.

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