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Sobre Nietzsche: há verdade?



A propósito de Nietzsche, uma questão levantada é se ele nega a verdade. Ele estaria representando a segunda posição nesta grande luta: “A verdade existe” X “Não há verdade alguma”? 

Se Nietzsche nega a verdade, ele não cairia na contradição de todo negador da verdade? Ele não deveria, para ser consequente, negar a própria negação? 

Tudo seria questão de perspectiva? Mas então o próprio perpectivismo não seria meramente uma perspectiva! O ceticismo ou o relativismo puro são insustentáveis. Precisam sempre de apoiar-se em qualquer coisa de sólido. 

Há quem defenda, com efeito, que Nietzsche não é um puro negador da verdade ou um puro relativista. O que ele teria negado é a verdade de Platão e do Cristianismo, isto é, a verdade da tradição, que é uma verdade que pretende impor-se ao homem como algo já decidido, a verdade objetiva e imutável.

Nietzsche estaria alinhado com o criticismo de Kant, que, com sua “revolução copernicana” na filosofia, estabeleceu que a verdade não existe sem o sujeito, que o sujeito está no centro, e a verdade, girando ao seu redor. 

Mas Nietzche teria ido além de Kant, e talvez muito além. Enquanto o sujeito kantiano é um sujeito da razão pequena, o indivíduo nietzschiano é o indivíduo do que alguns chamam de razão grande. O que é a razão pequena? É o intelecto, é a razão pura, que vive de abstrações e raciocínios. O que é a razão grande? É o corpo com suas paixões, afetos, inclinações com a razão pequena dentro dele. Se é adequado chamar de razão grande as razões do corpo e de razão pequena aquelas do intelecto, é uma questão que se pode decidir somente a partir do momento em que se decide que forma de filosofia referendar. A filosofia de Nietzsche pode chamar de razão grande os movimentos, desejos, pontos de vista e exigências do corpo porque para ele a razão ou a mente (no sentido clássico) não é algo de originário, mas de derivado do corpo. 

Vê-se bem que Nietzsche teria “corporificado” o sujeito kantiano, a ponto de ele perder a sua universalidade, a sua autonomia, a sua pureza. O centro das reflexões de Nietzsche é o indivíduo de carne e osso, marcado essencialmente pela vontade de poder ou por um feixe de pulsões. Se em Nietzsche resta ainda algo de formalidade, pode-se dizer que o único formal é o indivíduo como corpo dotado de impulsos, que depois se singulariza em João, Maria, Ana..., de maneira diferente em cada um. Não é mais o sujeito das formas universais kantianas. É o indivíduo do devir do mundo e do devir do corpo. E é só a partir desse corpo em devir que tal indivíduo estabelece valores (não mais verdades, como em Platão). O homem seria um indivíduo que pensa com o corpo, e a partir da “irracionalidade” do corpo. Corpo esse que lida sempre com a raiz trágica da vida.

O indivíduo nietzscheano é um criador de valores. E cria a partir das condições de seu corpo, a partir da razão grande. Esse mínimo de formalidade seria, pois, a verdade nietzschianamamente entendida.

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