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Pingos de filosofia - O simples existir e o irracionalismo

Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) descobriu que o ato de existir (esse, em latim), é o que há de mais originário na realidade. Não é a essência, como diziam os gregos, mas o ato de existir que é a fonte da realidade, pois sem tal ato nenhuma essência existiria.

Mas, pode-se perguntar, qual é o sentido do ato de existir? A essência tem o seu sentido evidente, pois essência quer dizer ‘o que é’. Ora, o ‘que’ é luz para a inteligência. Só conhecemos as coisas na medida em que vemos o ‘que’ no qual elas consistem. Assim, para uma filosofia das essências, como aquela grega, o sentido não era difícil de encontrar, pois cada coisa tinha o seu 'que' (quid, em latim).

Depois de Tomás de Aquino, no entanto, aprendemos que a essência é secundária em relação ao ato de existir. Como encontrar, então, o sentido derradeiro da realidade? Devemos ir ao ato de existir. Mas o ato de existir como tal não tem uma essência. Como descobrir a sua inteligibilidade, que não é aquela da essência? Qual é a luz do ato de existir?

Santo Tomás conseguiu iluminar o ato de existir dos entes mundanos porque reconheceu a existência do Ato de Existir absoluto. À luz do Absoluto Existir (Ipse Esse Subsistens), o ato de ser dos entes assumiu o seu sentido básico, que é o de ter sido posto por Outro. O Outro, o Existir Absoluto não deixou sem luz o existir dos entes. Para além da essência, Tomás ensinou a pensar o existir como tal e a ver a luz que o ilumina. A filosofia, depois de Tomás, não voltaria à essência grega para colocá-la como o sentido último do real.

Entretanto, a partir do século XIX a filosofia não tem reconhecido mais o Ato de Existir Absoluto como causa do ato de ser dos entes mundanos. A Transcendência tem sido sistematicamente negada. O que acontece, então? Acontece que sem a essência dos gregos e sem o Ato de Existir de Tomás de Aquino, o que resta é o simples existir dos entes sem sentido e sem inteligibilidade alguma. Do fundo do mar do simples existir surgem os maremotos e as grandes ondas do relativismo e do niilismo. Se já não existe nenhuma luz, mas somente o mero existir dos entes mundanos, então não se pode deter a vaga irracionalista a que temos assistido no mundo atual. No século XX, o existencialismo ateu foi o protótipo do pensamento que considera o mero existir sem a luz da essência dos gregos e sem a luz do Ato de Existir Absoluto de Tomás de Aquino. 

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